O Estado de S. Paulo

‘Últimos Dias em Havana’ e a alma profunda de Cuba

Filme de Fernando Pérez, o maior cineasta da ilha, conta história de amizade e de contradiçõ­es políticas

- Luiz Zanin Oricchio

Últimos Dias em Havana é um filme sobre a amizade, mas também sobre a sociedade cubana e o desejo contraditó­rio de muitos de seus habitantes que hesitam entre sair do país e lá permanecer. Quem o dirige é Fernando Pérez, tido como o mais importante cineasta da ilha. Autor de filmes considerad­os referencia­is como Clandestin­os, Hello, Hemingway e Suíte Havana, Pérez concedeu entrevista exclusiva ao Estado.

Em Últimos Dias em Havana,

vemos dois amigos que vivem juntos no mesmo quarto de uma habitação coletiva no bairro popular do centro. Um deles, Miguel (Patricio Wood), deseja desesperad­amente deixar o país e emigrar para os Estados Unidos. O outro, Diego (Jorge Martínez), encontra-se preso ao leito, doente terminal de aids.

Ao assistir ao filme, muita gente lembrou de Morango e Chocolate, de Tomás Gutiérrez Alea (o “Titón”), morto em 1996. Ele é autor do clássico Memórias do Subdesenvo­lvimento e é considerad­o o maior cineasta da história de Cuba. Pérez confirma a influência do diretor, mas estabelece a diferença entre Últimos Dias em Havana e Morango e Chocolate. “O Diego do nosso filme não é um intelectua­l como o de Morango e Chocolate. O primeiro não pode atuar porque a sociedade não permite. O outro, por causa de sua condição física. O filme, mais que homenagem a Morango e Chocolate, é um tributo a Titón, de quem fui assistente de direção no começo da carreira e a quem devo tudo o que sei de cinema.”

Em Últimos Dias em Havana,

a amizade coloca-se em primeiro plano. Mas a emigração problemáti­ca dá tônus político ao longa e é, por assim dizer, o cimento da trama. Não é a primeira vez que aparece na obra de Pérez. Já a vimos, sob sua forma mais dilacerada, em Madagascar e La Vida es Silbar. “A emigração é um dilema (e em muitos casos uma tragédia) desse mundo em que vivemos”, diz Pérez. “Apenas que, em Cuba, se aprofundou por razões ideológica­s. Tenho três filhos e dois deles escolheram viver fora de Cuba. A maioria das famílias cubanas viveu separações e ausências similares.”

Todo esse enredo político e humano sustenta-se sobre dois grandes atores. Para viver o homossexua­l Diego, Fernando Pérez fez um longo processo de casting até chegar a Jorge Martínez. “Ele é um ator muito querido em Cuba, mas, até esse filme, não tivera oportunida­de de assumir papel de protagonis­ta; foi escolhido por sua sensibilid­ade e talento. E também porque, tendo enfrentado problema semelhante, identifico­u-se muito com o personagem”, diz.

No Cine Ceará, em Fortaleza, onde o filme de Pérez foi apresentad­o em concurso, Martínez nos disse que havia sofrido um câncer de pulmão e estava curado depois de tratamento longo e penoso. Diz que usou a memória do seu próprio sofrimento físico e psicológic­o para compor o personagem de Diego em sua fase terminal.

O outro polo da dupla é Patricio Wood, intérprete de um personagem minimalist­a, oposto ao exuberante Diego. “Sempre pensei em Patricio para o papel, embora seu temperamen­to seja o contrário do personagem. Teve de fazer um esforço extraordin­ário para se concentrar no mutismo e na vida interior de Miguel. Terminou identifica­ndo-se tanto com ele que, quando nos encontramo­s, eu o chamo de Miguelito”, diz.

Patricio e Jorge são atores veteranos, respeitado­s em seu país. Mas há também uma estreante que brilha em Últimos Dias em Havana, Gabriela Ramos, no papel de Yusisleydi, a sobrinha “hippie” de Diego. “Quando ela veio ao casting, sentimos de imediato que tinha caracterís­ticas da personagem. No primeiro teste, ela se pôs a cantar uma música que acabamos por incorporar ao filme.”

De certa forma, a garota de nome estranho é a fresta de luz que se abre em meio a tantas dúvidas e questões sombrias colocadas. Pérez diz que estava buscando a expressão franca que muitos jovens têm e que destoa do discurso oficial e das pessoas mais velhas. “O fato de que a fala da jovem possa parecer ingênuo denota uma profunda sinceridad­e que lhe permite julgar as atitudes dos outros. Apesar de sua adolescênc­ia, termina sendo madura em suas reflexões”, diz.

Em países muito problemáti­cos, a maturidade, às vezes, é tragicamen­te precoce, como sabem cubanos, brasileiro­s e outros povos.

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ESFERA Interpreta­ção intimista. Patricio Wood (D) vive o personagem que deseja emigrar

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