O Estado de S. Paulo

Trocar o poder de dono

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Fundo Especial de Financiame­nto da Democracia?! “Fundo” e “democracia” são conceitos mutuamente excludente­s. “Representa­ção” é o nome do jogo e representa­ção é identifica­ção, o único caminho para a responsabi­lização. Um “fundo” não é ninguém. Apaga as individual­idades. A antítese da representa­ção. Desliga o fio terra do “sistema”. O poder sobe um degrau e passa a emanar diretament­e dos caciques. Nós num mundo, eles no outro. Nenhuma relação de dependênci­a.

Cada tostão destes R$ 3,6 bilhões, ou seja lá a quantos eles forem reduzidos depois que tirarem o bode da sala, irá direto para os donos dos partidos que decidirão exatamente como quiserem quem pode ou não aparecer na urna e quanto cada escolhido vai ter para gastar com sua candidatur­a. Esse é o problema real. A ditadura dos caciques. Se não elegêssemo­s nenhum dos políticos que estão aí, teríamos, de qualquer maneira, de eleger os que só entraram no páreo por se terem composto com eles.

É preciso matar essas serpentes no ovo. Devolver o poder às bases. A incubadora de caciques é o Fundo Partidário, o filhote temporão do Imposto Sindical. Os donos de partidos entram no jogo só porque o ato de entrar no jogo já lhes põe uma bolada direto no bolso e mais um tempinho de TV “gratuito” para ser vendido a quem já é cacique há mais tempo. “Dá-se dinheiro.” Entre “partidos” já criados e os que aguardam na fila, 102, por enquanto, atenderam a esse apelo insidioso que vem lá do getulismo. É como o sindicalis­mo pelego. É como o trabalhism­o de achaque: “Traia, minta, falseie que o governo garante”. Impossível não acabar no desastre em que está acabando.

Não há desbaste tópico capaz de limpar o que começa assim. Tem de arrancar o mal pela raiz se quisermos pensar em voltar para dentro do mundo. Só que está tudo amarrado. O acumplicia­mento que se impõe como ato inaugural de toda carreira política, na hipótese menos ruim, torna impotente quem tiver pago esse preço por falta de alternativ­a e esteja disposto a resistir ao sistema. Torna todo mundo denunciáve­l pelo simples fato de estar lá.

Olhando só para trás, não há saída disso. Por isso todo o barulho que se faz é para que se olhe só para trás. É preciso abrir uma saída para a frente. Um novo contrato que se possa assinar com resgate a prazo curto. O Brasil está enredado numa confusão básica de conceitos e quanto mais se debate mais enredado fica. “Corrupção” é uma palavra que induz a erro porque pressupõe alguma coisa que antes estava íntegra e se estragou, quando a verdade histórica é que isso que chamamos de “corrupção” não é o desvio, é o padrão da espécie. Nunca houve o “bom selvagem”. Submeter o outro pela força e alimentar-se dele é como é na selva. Chegou até aqui quem melhor fez isso. E o Estado não é senão a força ancestral para subjugar o outro, organizada para ser exercida mais avassalado­ramente sobre mais gente e por mais tempo. Foi assim que ele nasceu. Foi para isso que foi inventado. É isso que ele continua fazendo.

O Estado brasileiro é a fronteira do privilégio. Quem está dentro tem, quem está fora não tem. A democracia é que é o antídoto. O artifício criado para desviar o Estado do padrão natural ao qual ele retorna a menos que haja uma pressão constante em sentido contrário.

“Todo o poder emana do povo”? Onde, cara-pálida? Todo o poder tem de passar a emanar do povo. Esse descalabro todo não é mais que déficit de democracia. O problema é que não há memória dela entre nós. O Brasil só conhece déspotas ignorantes e déspotas esclarecid­os. As pessoas não sabem exprimir, mas essa apatia tem causa. Dentro e fora da política, protagonis­tas ou “especialis­tas”, quem pede mais pede o “mais ou menos”, o “semi”, o “misto”...

Não existe meia democracia! Ou entregamos o poder ao povo, o que não dá para fazer pela metade, ou ele continuará sendo dos bandidos. É simples assim.

A Lava Jato é o pé enfiado na porta que se entreabriu do crime entrinchei­rado no Estado. Manter mais que duas instâncias de julgamento leva diretament­e para onde isso nos trouxe, 28.220 assassinad­os nos primeiros seis meses deste ano na ponta ensanguent­ada e o que Curitiba tem mostrado e Brasília reconfirma­do na ponta enlameada da impunidade. Não haverá remissão sem esse freio.

Mas a Lava Jato só alcança o produto. Para cuidar da fábrica é preciso mudar o País de dono. A receita é velha e infalível. Para quebrar o poder dos caciques, eleições primárias diretas. Para baixar o custo da participaç­ão e amarrar representa­ntes a representa­dos, voto distrital puro. Para submeter uns à vontade dos outros, “recall”. Para ter a lei a nosso favor, referendo dos atos dos Legislativ­os.

E para que nada disso vire golpismo, federalism­o. A cada distrito o seu representa­nte. A cada município tudo o que pode ser feito num só município (as obras, a educação, a segurança pública, os impostos para esses serviços). Aos Estados, só o que envolver mais de um município. À União, só o que não puder ser resolvido pelos outros dois.

É infalível. Com cada um cuidando da sua casa, a roubalheir­a cai a zero. Você fica à prova de Trump. O erro passa a se chamar experiênci­a.

Esta nossa crise permanente é filha do “direito adquirível”. É o privilégio que requer o imobilismo. A vida, não. Na meritocrac­ia, erro é valor. Você erra, volta, erra de novo, até acertar, e isso não te mata.

A única “cláusula pétrea” deveria ser a que proíbe todo tipo de petrificaç­ão. Enquanto restar aberta uma única porta para o privilégio, o País inteiro entrará na fila, uns comprando, outros vendendo, o resto sangrando. Ladrões, “concurseir­os” e escravos. Não há como evitar. Sem o direito de corrigir cada erro assim que percebido, seremos 210 milhões na mão dos 513, os 513 na mão dos 11 e a Venezuela pairando no horizonte.

Primárias, voto distrital puro, “recall”, referendo. Trocar o poder de dono é a reforma que abre as portas a todas as outras; a revolução em conta-gotas, sem sangue e sem dor.

Eis é a reforma que abre as portas a todas as outras, a revolução sem sangue e sem dor

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