De táticas e técnicos
Quanto do reconhecido mérito de Tite se deve à ressurreição dos craques brasileiros?
Quando o mundo ainda era fragmentado, e uma viagem à Europa era experiência que se guardava por toda a vida, sabia-se pouco do futebol europeu. Do mesmo modo, eles sabiam pouco sobre o futebol brasileiro. De ambos os lados havia mais vagas impressões e noções igualmente imprecisas. Futebol europeu era um “futebol de passes”, o brasileiro era um “futebol de dribles”. O europeu era rígido, mecânico, muito hierarquizado, como as linhas de montagem, subordinados à figura de um líder, o treinador. O brasileiro era livre, improvisado, cheio de fantasia e pouco afeito a regras e procedimentos disciplinados.
Enquanto o futebol brasileiro não se impôs ao mundo, isto é, antes de 1958, os europeus eram venerados e prestigiados. Alguns chegaram ao Brasil, mesmo argentinos e uruguaios, que eram o que de mais próximo havia dos europeus em nosso continente. Embora reconhecendo seus méritos, nunca foram endeusados, havia sempre a desconfiança de que um dia a maneira brasileira iria se impor. Isso aconteceu em 1958, e pior, com um treinador acusado de dormir no banco durante os jogos.
Claro que não era verdade, havia tática e treinamento. Só que uma geração particularmente genial deixava na sombra qualquer treinador. Era como se prescindisse dele. Quem teria alguma coisa a ensinar àqueles craques? Quem lhes diria como se mover no campo? Ou como dobrar um adversário? Não havia entre eles um garoto de 17 anos que assombrava o mundo?
A conquista de 1958 acabou com o que ainda havia de admiração pelo futebol europeu e seus métodos. Não fora a União Soviética, com seus ares de equipe científica, de táticas misteriosas, devidamente humilhada e destroçada? Dali em diante ficou visível ao mundo não o futebol brasileiro, mas a figura do craque brasileiro. Até a Argentina se curvou ao futebol-arte. Durante alguns anos, brasileiros foram contratados aos montes por times argentinos, sobretudo Boca e River. Durante quatro anos um dos integrantes da seleção vencedora que inventou o futebol-arte foi capitão do Boca Juniors.
E assim foi por anos. Mesmo nos clubes, treinadores eram figuras relativamente secundárias. Quem não se lembra de Lula, treinador do Santos, de quem se dizia que sua função mais sofisticada era distribuir as camisas aos jogadores. Isso durou muitos anos e só começou a se transformar por um acidente do futebol: uma seleção de gênios perdeu a Copa do Mundo de 1982.
De repente acordamos para uma nova realidade: alguma coisa estava errada. E, como de costume no Brasil, perdemos a segurança e a confiança em nós mesmos. Os nossos encantadores e indisciplinados jogadores na verdade tinham muito que aprender. Começamos um processo que nos levou ao outro extremo: o treinador é tudo; o craque, um acidente. E aí vem a pergunta: é essa ideia que conduz à extinção do craque ou, ao contrário, é a ausência de craques que promove a supremacia do treinador? O fato é que, quase de uma hora para outra, deixamos de produzir jogadores.
A ultima vez que essa invenção, o craque brasileiro, materializou-se em campo foi em 2002. Antes disso ganhamos uma Copa realmente, mas com um único grande craque na equipe. Em 2002 havia pelo menos sete. Ganhamos, aliás, com um treinador que jamais foi considerado um gênio tático, bem limitado em seu pensamento. Mas havia craques. Curiosamente, esses craques abriram o caminho da Europa para seu provinciano treinador.
Hoje, depois de tanto decair, está talvez acontecendo a mesma coisa: quando Tite acaba de ser reconhecido pelos próprios europeus como um treinador de méritos, quanto disso não se deve a uma possível ressurreição do craque brasileiro? Aleluia!
A conquista de 1958 acabou com o que havia de admiração pelo futebol europeu