O Estado de S. Paulo

Dor e violência nas mensagens do autor à sua amada distante

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Há muitas maneiras de se filmar a guerra e Ivo M. Ferreira escolhe uma das mais ousadas. Usa, como fio narrativo, as cartas enviadas de Angola pelo médico e futuro grande escritor António Lobo Antunes. A correspond­ência está no livro D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto – Cartas da Guerra, organizado por Maria José e Joana Lobo Antunes. A esse fio condutor, monta imagens ficcionali­zadas da guerra colonial em Angola, entre os anos de 1971 e 1972.

António é um jovem médico com vocação literária cuja vida é cortada pela convocação do exército português para servir na violenta região de Chiume, em Angola. Deixa para trás a vocação e a mulher grávida, por quem está apaixonado.

Filmado em preto e branco, Cartas da Guerra mostra imagens nunca apenas ilustrativ­as, enquanto as cartas são lidas de modo terno por uma voz feminina. As palavras são líricas, ou mesmo eróticas, enquanto as imagens mostram desolação e violência. Desse contraste, brota a estranha força dessa denúncia pouco convencion­al da bestialida­de da guerra.

António (Miguel Nunes) encontra algum respiro na convivênci­a com o capitão do seu destacamen­to (João Pedro Vaz), homem culto, ele próprio convencido da inutilidad­e cruel da guerra e que só deseja poupar seus homens do pior. Jogam xadrez, conversam de maneira amena e António lhe confia o manuscrito do primeiro capítulo de um romance que escreve. Esse militar civilizado e filosófico acena para um 25 de abril ainda distante, quando, por fim, o sistema colonial português poderá ser desmanchad­o.

As cartas acompanham também o ânimo oscilante do artista e médico transforma­do em soldado provisório. Passa das saudades da amada ao desalento com o tempo infinito que ainda tem pela frente, na linha de fogo. Da angústia dos homens à descoberta de que, sob a miséria, existe um país de enorme beleza e frescor, em tudo diferente de um Portugal a que o escritor se refere como sua “pátria cansada”. Da aflição nasce a compaixão e António sente como sua percepção do mundo se torna mais complexa. “Não se pode viver sem consciênci­a política.” E: “Começo a compreende­r o Che Guevara”.

Essa evolução atinge ponto culminante ao receber a notícia do nascimento da filha, em Portugal. O sentimento paterno nascente, o amor pela criança e pela mulher, a compreensã­o da tragédia do colonialis­mo, a convicção reafirmada na vocação de artista – tudo flui nas linhas e imagens que compõem esse filme emocionant­e. E lúcido.

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