Fatos áridos
A escassez de água é consequência da má gestão dos recursos hídricos do planeta; isso tem de mudar
“Sem amor viveram milhares. Sem água, nenhum”, escreveu W. H. Auden. O poeta britânico esqueceu de acrescentar que, assim como acontece com o amor, muitas pessoas têm profunda aversão moral a pagar pelo líquido que nos mantém vivos. Há quem pense que a água é um direito, devendo portanto ser gratuita. Outros pressionam as autoridades para que determinados grupos tenham sua distribuição subsidiada. O resultado é um desperdício sem igual, que poderia ser perfeitamente evitado.
A água cobre dois terços da superfície terrestre. Não se esgota depois de consumida; continua, simplesmente, circulando. Se é assim, o que teria levado pesquisadores do MIT a prever que, até meados do século, mais de metade da humanidade viverá em áreas – onde hoje os recursos hídricos são explorados de forma insustentável – assoladas pela escassez de água?
Um motivo é que, conforme aumenta e enriquece, a população mundial consome mais água. Outro fator são as mudanças climáticas, que aceleram os ciclos hidrológicos, aumentando a concentração de água onde ela já é abundante e agravando, em contrapartida, a aridez das regiões secas. Um ranking de 167 países, elaborado pelo World Resources Institute, mostra que 33 deles enfrentarão, dentro de pouco mais de 20 anos, situações de enorme estresse hídrico. O fato, porém, é que boa parte do problema resulta da gestão inepta da água. No processo de adaptação a um planeta mais quente, é fundamental desenvolver mecanismos que viabilizem uma alocação mais eficiente dos recursos hídricos.
Uma pessoa precisa ingerir apenas alguns litros de água por dia, mas são necessárias centenas de litros para irrigar uma plantação e milhares para colocar um pedaço de carne bovina ou suína na mesa do consumidor. Os agricultores, assim como os executivos que comandam as indústrias, costumam ser politicamente influentes, o mais comum é que paguem muito pouco pela água que consomem. Alguns até arcam com os custos operacionais do fornecimento, mas não com a infraestrutura que leva a água até seus registros e torneiras. Muitos não pagam nada pela exploração de lençóis aquíferos. Na Índia, dois terços da água utilizada na irrigação é captada dessa maneira. Quando uma coisa é barata demais, as pessoas tendem ao desperdício. Exemplo: em lugares áridos, como a Califórnia, agricultores dedicam-se a culturas que consomem grande volume de água, como a do abacate, que poderiam muito bem ser importados de regiões mais ricas em recursos hídricos.
O segredo para uma gestão mais eficiente da água é cobrar por ela um preço adequado, fazendo com que os consumidores tenham um motivo para evitar o desperdício e incentivando os investidores a implantar a infraestrutura necessária a seu fornecimento. A área exige investimentos volumosos: mais de US$ 26 trilhões entre 2010 e 2030, segundo uma das estimativas. No entanto, antes que as autoridades possam cobrar adequadamente pela água, é preciso determinar com clareza a quem pertencem os recursos hídricos (ou, mais precisamente, quem tem direito de extração e de onde).
A Austrália, que há mais de 20 anos tem um sistema de negociação de direitos hídricos, é um modelo a ser seguido. O objetivo é direcionar a água para quem possa fazer melhor uso dela. Determinar eventuais diferenças entre o volume de água consumido e o que seria efetivamente necessário consumir é essencial. Na Austrália, direi- tos antigos (cuja titularidade normalmente estava na mão de proprietários de terras) foram substituídos por títulos perpétuos, que garantem a seus detentores uma proporção do volume de água anualmente alocado. Isso significa que determinada pessoa só pode consumir mais água se outra consumir menos.
Para que o sistema funcione a contento, é preciso assegurar que os títulos de direito à água sejam distribuídos de forma justa e transparente. A tecnologia criptográfica “blockchain”, que permite a terceiros anônimos registrar, sem risco de fraude, quem é dono de quê, pode ajudar nisso.
A formulação de políticas adequadas não estimulará apenas um consumo mais responsável de água. Também fomentará o desenvolvimento de tecnologias como a da carne artificial (que usa muito menos água do que a carne natural). O escritor Mark Twain tinha razão quando disse: “Uísque se bebe; por água se briga”.