O Estado de S. Paulo

Como Emmanuelle Bercot fez história

Diretora de ‘De Cabeça Erguida’, atriz de ‘Meu Rei’, a francesa fala com franqueza sobre filmes e mulheres

- Luiz Carlos Merten

Com apenas dois filmes no currículo, Maïwenn conseguiu o prodígio de ser duplamente premiada no Festival de Cannes, o maior do mundo – prêmio especial do júri, por Políssia; melhor atriz para Emmanuelle Bercot, por Meu Rei. O segundo está em cartaz na cidade. Um filme sobre a paixão, intenso, gritado. Quem gosta, gosta muito. Quem não gosta, se pergunta de onde vem esse prestígio de Maïwenn em Cannes? Emmanuelle Bercot riu de todas essas observaçõe­s do repórter. A própria Emmanuelle esteve no Brasil, no ano passado, integrando a delegação do Festival Varilux de Cinema Francês, do qual Mon Roi foi um dos destaques em 2015. Como Maïwenn, Emmanuelle irritou as feministas de plantão.

Todas perguntara­m sobre a importânci­a de haver sido, em mais de 30 anos, a segunda mulher, em toda a história do Festival de Cannes, a dirigir o filme de abertura do ano passado – De Cabeça Erguida. De tanto ouvir a pergunta, Emmanuelle deu respostas que pareceram antipática­s. “A importânci­a de ter sido a primeira diretora a inaugurar Cannes, desde o começo dos anos 1980, está muito mais na cabeça dos outros, ou das outras. Vivemos num mundo muito machista, e eu sou a favor de que seja contestado, mas espero que ninguém pense que La Tête Haute estava cumprindo alguma cota.”

Quando conversou com o repórter junto à piscina do Hotel Sofitel, em Copacabana, no Rio, Emmanuelle estava cansada. Podia-se ler seu pensamento – aí vem mais um. “Você abriu o Festival de Cannes como diretora...” – “Ah, não...” – “... ganhou também o prêmio de melhor atriz, e isso não só é inédito como talvez nunca ocorra de novo.” O fenômeno não foi haver inaugurado Cannes, mas o ‘e’. E haver sido melhor atriz no mesmo festival. Não existem muitos diretores, ou diretoras, capazes de tal façanha.

O rosto de Emmanuelle Bercot ilumina-se. Agora, sim, podemos conversar. Para uma atriz e diretora, como foi trabalhar num filme de outra atriz e diretora. “Maïwenn foi de uma franqueza brutal comigo. Disse que estava me escolhendo porque queria uma atriz capaz de criar a personagem como a via. Não particular­mente bonita nem sexy. Uma mulher comum, cheia de dúvidas. No filme, chego a interpelar Vincent ( Cassel), querendo saber o que ele viu em mim? Meu Rei é um filme sobre o amor, e mais que isso, a paixão. Por que a gente gosta de uma pessoa, em especial, e não de outra? Todo mundo se deve fazer essa pergunta ao iniciar um relacionam­ento – por que ele? Ela?” Uma questão, sem dúvida, intrigante – apaixonant­e. E por que Meu Rei é tão intenso, gritado? O repórter compara o filme a um psicodrama, aquele tipo de cena encenada (mas com cara de vivida) típico do cinema de John Cassavetes.

“A explicação mais simples é que Johnny ( Cassavetes) era ator. Maïwenn, também. Em Cannes, um jornalista norteameri­cano perguntou se era assim que ela via os franceses... Não creio que seja uma questão de nacionalid­ade. Mas Maïwenn é assim. Seus filmes todos têm essa caracterís­tica. Apesar disso, ela não faz cinema autobiográ­fico.” (Maïwenn é mãe de duas filhas, uma delas com o cineasta Luc Besson.) Es- sa espécie de urgência – o diálogo gritado – sugere improvisaç­ão... “Mas é só sugestão. Maïwenn escreve muito os filmes. Pede que a gente leia uma vez e crie a cena. E aí ela vai moldando nossa interpreta­ção. É o diretor ou diretora que mais se liga no som, que conheço. Já a vi fechar os olhos ao seguir a cena, só para se concentrar no som, no ruído. Maïwenn tem uma frase ótima. Atores são muito inseguros para aceitar o silêncio. Precisam falar compulsiva­mente. O filme tem esse ritmo. Some as inseguranç­as dos atores com as de apaixonado­s e pronto... “Ça c’est Mon Roi!” Tony e Georgio, Georgio e Tony. Tony é Emmanuelle Bercot, Georgio, Vincent Cassel. De cara, ela muda de cidade porque sofreu um ferimento no joelho e precisa se submeter a um longo tratamento para tentar voltar a caminhar normalment­e. Mas o ferimento físico é só parte do problema de Tony. A dor maior é interna. Ela ainda junta os cacos após seu rompimento com Georgio, pai de seu filho. Ele é narcisista – um ‘rei’ –, manipulado­r. E no final em aberto, depois de idas e vindas, o espectador não tem muita certeza de que eles estejam voltando, ou de que Tony esteja ‘curada’.

Já no seu filme sobre uma brigada que atende a ocorrência­s com crianças ( Polisse/Políssia), Maïwenn criava esse tipo de cinema à flor da pele. Cenas como psicodrama­s. Fortes, gritadas, intensas. Mais, mais, mais. Não é para todos os gostos, mas há sinceridad­e nessa opção que é tanto ética quanto estética. Maïwenn, irmã da atriz Isild Le Besco, ama os personagen­s sofridos, fragilizad­os. Gente sofredora. Os policiais têm problemas para separar vida afetiva e profission­al. Tem uma que ingressa numa viagem sem volta e se mata.

Pode-se até pensar que isso vai se repetir com Tony. Folle d’amour, de passion. Louca de amor e de paixão. Maïwenn cria esses diálogos como você nunca viu num filme de homem, mesmo de mulher. Georgio e Tony discutem se ela tem a vagina ‘larga’. Como? Todas as coisas são ditas. Não há muito espaço para mal-entendidos, ou silêncios. Ou então tudo é mal-entendido, porque ao falar muito não se diz muita coisa. O silêncio torna-se incômodo. É um cinema visceral.

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FOTOS DIVULGAÇÃO História de amor. Vincent Cassel e Emmanuelle Bercot formam o casal Tony e Georgio

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