O Estado de S. Paulo

O lamento de Artur Azevedo na madrugada

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Minha vidinha muitas vezes se resume ao meu entorno, aqui em Pinheiros. Minha casa fica a cem metros da Rua Artur Azevedo, que frequento por ali estar a banca de jornais do Cid; o menor café do mundo; o ótimo sebo Acervo; o Finnegan’s pub; a cantina Vico d’o Scugnizzo (Beco do moleque de rua); os restaurant­es Cartel e Arturito. É minha comunidade.

Estava descendo a Artur em direção à rua Lisboa, quando ouvi uma voz agoniada, “ai de mim, ai de mim”. Olhei para os lados. Nada. Começo de madrugada fria, garoa. Dei mais uns passos, ouvi de novo, “ai de mim, não merecia isto, o futuro é triste para quem morre”. Um morador de rua passando mal, precisando de auxílio? Bateu-me a compaixão, poderia salvar uma vida. Esperei, veio o silêncio. Cheguei na Lisboa, dei com o pessoal da cozinha do restaurant­e Genova. Marcelo, Vilma, Paula e Mariana, que saíam do restaurant­e, tinham madrugado a experiment­ar receitas novas. Perguntei:

– Por acaso, ouviram uma pessoa, chorando, se lamentando?

Não! Não tem ninguém na rua. O que dizia essa pessoa? – Ai de mim, ai de mim. Os quatro se entreolhar­am, me contemplar­am com um ar de “coitado, delira”. Disseram não, não vimos nada, esconderam o riso e se foram. Cheguei à praça Benedito Calixto, deserta. Um e outro ônibus subindo a rua Teodoro Sampaio vazia, com boa parte de suas lojas de instrument­os musicais ostentando a placa de aluga-se. A crise vem comendo todo mundo pelas beiradas. Subi a rua e então na esquina da rua João Moura, vi um senhor dentro do estacionam­ento, onde por quase cem anos houve bela mansão, demolida da noite para o dia e agora à espera de um empreendim­ento imobiliári­o. Qualquer terreno nesta cidade vira estacionam­ento.

Do outro lado do alambrado, dei com o homem robusto, pálido, cabelos revoltos, roupas antiquadas, se bem que hoje cada um se veste como quer. Pareceu-me um sujeito do sécu- lo 19. Tinha o rosto redondo, usava pincenê e tinha os bigodes longos e revirados para baixo, contornand­o a boca, lembrando Salvador Dalí. Imaginei que já o tinha visto. Mas onde? Então, ele caminhou em direção ao alambrado, a se queixar: “Ai de mim, ai de mim”. Era ele que ouvi. “O senhor não está bem?” “Ai de mim, nem queira saber, fui esquecido.”

“Posso ajudar?”

“Não sei como. Coisas que escrevi estão atribuindo a outros.” “O senhor escreve?” “Escrevi e muito. Fui companheir­o de Machado de Assis na Secretaria de Viação no Rio de Janeiro, ele até criticava meus contos.” “Então, o senhor é...?” “Artur Azevedo, ao seu dispor.” Sim, era ele, vi fotos, gravuras, desenhos nos livros, no Google, ilustra- ções nas enciclopéd­ias.

“Artur Azevedo? Que prazer! Uma honra. O que o aflige?”

“É que escrevi um conto, um bom conto por sinal, Plebiscito. Faz mais de cem anos. Um conto muito estudado e lido certa época nas escolas. O filho pergunta ao pai o que é plebiscito, o pai não sabe, se encabula, enrola, até poder olhar no dicionário.”

“Pois eu li, era adotado, analisado no ginásio.”

Um frio percorreu-me a espinha, como dizem os clichês. Eu escrevi que o conto era do Machado. Vejam só, aqui neste espaço, 15 dias atrás. Que situação! E agora?

“Pois hoje não é que me avisaram que um cronista desta cidade citou meu conto atribuindo-o ao meu amigo Machado? Isso doeu. Tudo de bom é do Machado!” Receoso, fui apalpando: – Às vezes, falta cultura... é um erro de memória... E ninguém corrigiu o jornalista?

“Ou os professore­s não reclamaram, ou o escritor não tem leitores entre os professore­s de português e de Letras, ou estes não leem mais como antes. Pensei em escrever, protestar, mas onde estou não tem correio. Se o senhor puder fazer alguma coisa, faça, explique. Vá ver o jornalista é acredito que é bem-intenciona­do, teve um lapso. Ou será ignorante? Não creio. Pronto, desabafei, me vou. Dia desses, tomaremos um café por aí.”

Seguiu pela rua João Moura em direção à Vila Madalena. Será que ele sabia que fui eu? Educado, discreto, tinha se contido, dera o recado com elegância. Artur Azevedo, vejam só. Autor de O Plebiscito, que atribuí a Machado de Assis. Artur, maranhense, fez carreira no Rio de Janeiro, tem uma obra espantosam­ente grande, só em teatro mais de cem peças. Um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Morreu em 1908, aos 53 anos.

Ao chegar em casa, o jornal tinha me repassado o e-mail do leitor Pedro Lázaro Teixeira, de Batatais, me alertando que na minha crônica Estamos vivendo um mega despautéri­o, o conto Plebiscito é de Artur Azevedo. Alguém tinha notado. Imprimi o e-mail e corri direto à Mercearia São Pedro, reduto dos jovens autores. Acertei, Artur Azevedo estava num canto conversand­o com Ivana de Arruda Leite e Marcelino Freire, que o convidavam para um debate. Apressado, entreguei o e-mail de Pedro Lázaro. “Veja, o senhor não está esquecido.” Não importava que tivesse sido uma única manifestaç­ão. Artur sorriu aliviado, quis me abraçar, seu corpo atravessou o meu. Luiz Ruffato, solitário em um canto (o que é impossível na Mercearia), murmurou: “Se eu contar, ninguém acredita, mas se duvidarem de você conte comigo”.

“Ai de mim, ai de mim”, dizia o sujeito, que usava pincenê e bigode lembrando Dalí

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