A lei e o afeto
Não é raro que uma pessoa forneça todo conforto material e suprimento afetivo a outrem sem que, ainda assim, o queira em situação de paridade dos filhos biológicos enquanto herdeiros.
Deondebrotaoamor – sentimento reputado como o mais nobre, pautado sobretudo pela incondicionalidade, e que tem nas representações parentais o seu modelo mais consolidado? Dos filhos nascidos da junção cromossômica de pai e mãe dizemos que são biológicos; daqueles que não guardam liames genéticos nos referimos como “filhosdocoração”.peranteo direito das famílias, o que estariareservadoaumeaoutro, uma vez que ambos seriam indistintamente “filhos do amor”?
Primeiramente, é preciso pontuar as duas formas de vínculo de filiação, além da biológica. A civil, que resulta do processo de adoção, substituindo a relação familiar anterior pela do núcleo adotante, e a socioafetiva, decorrente dos laços criados através do convívio, inserindo outros elementos de autoridade parental sem, contudo,excluirospreexistentes.
A socioafetiva, portanto, se desdobra em multiparentalidade,umavezque,emtese,os deveresparentaispassamaser oriundos de fontes diversas, configurando a possibilidade de existirem até quatro provedores: pais e mães que compartilhamcomofilhoamesma ancestralidade, ou não.
Aparentalidadesocioafetiva pode ser admitida oficialmente, passando a incluir o nome do pai/mãe socioafetivo na certidão de nascimento, em concomitância com os dos genitores biológicos. Mas,nãoimportandoaforma como o vínculo foi estabelecido, desde que ele de fato exista, filhos têm as mesmas prerrogativas perante a lei: precisam que lhes seja asseguradotudooqueproclamao Estatuto da Criança e do Adolescente(eca).pordecisãodo STF não há hierarquia entre as modalidades de filiação: filhos biológicos, adotivos ou socioafetivos compartilham em igualdade os direitos advindos de sua condição, seja em questões de pensão alimentícia ou de herança.
Aportajurídicaqueseabre para acolher a multiparentalidade é bem-vinda, e até tardia, considerando que a diversidade de modelos familiares existentes é a razão precípua pela qual o direito das famílias não pode parar de evoluir. Na prática, caberá aos magistrados a árdua tarefa de discernir entre as demandas socioafetivas legítimas e aquelas que só visam benefício patrimonial.
Estamos apenas no início de uma jornada que encontrará inúmeras encruzilhadas demarcadas por pontos de interrogação.
Não é raro que uma pessoa forneça todo conforto material e suprimento afetivo a outrem sem que, ainda assim, o queira em situação de paridade dos filhos biológicos enquanto herdeiros. Comodeterminarse,numcenário post-mortem ou numa situação de incapacidade, a reivindicação do caráter afetivo de uma filiação expressa fidedignamente o desejo que se tinha em vida ou quando se estava apto a manifestar essa vontade? Perguntas precisarão ser respondidas, no entanto nunca é demais enfatizar a pertinência do reconhecimento da parentalidade socioafetiva.