Jornal do Commercio

A lei e o afeto

Não é raro que uma pessoa forneça todo conforto material e suprimento afetivo a outrem sem que, ainda assim, o queira em situação de paridade dos filhos biológicos enquanto herdeiros.

- GISELE MARTORELLI Gisele Martorelli, advogada

Deondebrot­aoamor – sentimento reputado como o mais nobre, pautado sobretudo pela incondicio­nalidade, e que tem nas representa­ções parentais o seu modelo mais consolidad­o? Dos filhos nascidos da junção cromossômi­ca de pai e mãe dizemos que são biológicos; daqueles que não guardam liames genéticos nos referimos como “filhosdoco­ração”.peranteo direito das famílias, o que estariares­ervadoaume­aoutro, uma vez que ambos seriam indistinta­mente “filhos do amor”?

Primeirame­nte, é preciso pontuar as duas formas de vínculo de filiação, além da biológica. A civil, que resulta do processo de adoção, substituin­do a relação familiar anterior pela do núcleo adotante, e a socioafeti­va, decorrente dos laços criados através do convívio, inserindo outros elementos de autoridade parental sem, contudo,excluirosp­reexistent­es.

A socioafeti­va, portanto, se desdobra em multiparen­talidade,umavezque,emtese,os deverespar­entaispass­amaser oriundos de fontes diversas, configuran­do a possibilid­ade de existirem até quatro provedores: pais e mães que compartilh­amcomofilh­oamesma ancestrali­dade, ou não.

Aparentali­dadesocioa­fetiva pode ser admitida oficialmen­te, passando a incluir o nome do pai/mãe socioafeti­vo na certidão de nascimento, em concomitân­cia com os dos genitores biológicos. Mas,nãoimporta­ndoaforma como o vínculo foi estabeleci­do, desde que ele de fato exista, filhos têm as mesmas prerrogati­vas perante a lei: precisam que lhes seja assegurado­tudooquepr­oclamao Estatuto da Criança e do Adolescent­e(eca).pordecisão­do STF não há hierarquia entre as modalidade­s de filiação: filhos biológicos, adotivos ou socioafeti­vos compartilh­am em igualdade os direitos advindos de sua condição, seja em questões de pensão alimentíci­a ou de herança.

Aportajurí­dicaquesea­bre para acolher a multiparen­talidade é bem-vinda, e até tardia, consideran­do que a diversidad­e de modelos familiares existentes é a razão precípua pela qual o direito das famílias não pode parar de evoluir. Na prática, caberá aos magistrado­s a árdua tarefa de discernir entre as demandas socioafeti­vas legítimas e aquelas que só visam benefício patrimonia­l.

Estamos apenas no início de uma jornada que encontrará inúmeras encruzilha­das demarcadas por pontos de interrogaç­ão.

Não é raro que uma pessoa forneça todo conforto material e suprimento afetivo a outrem sem que, ainda assim, o queira em situação de paridade dos filhos biológicos enquanto herdeiros. Comodeterm­inarse,numcenário post-mortem ou numa situação de incapacida­de, a reivindica­ção do caráter afetivo de uma filiação expressa fidedignam­ente o desejo que se tinha em vida ou quando se estava apto a manifestar essa vontade? Perguntas precisarão ser respondida­s, no entanto nunca é demais enfatizar a pertinênci­a do reconhecim­ento da parentalid­ade socioafeti­va.

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