ISTO É

INTERNACIO­NAL

Depredaçõe­s, incêndios, saques, repressão, prisões e mortes. Por que o país que apresenta alguns dos melhores índices econômicos da América Latina perdeu a estabilida­de política e mergulhou em uma violenta convulsão social

- Antonio Carlos Prado

Por que o Chile, um dos países latinoamer­icanos com os melhores indicadore­s econômicos, está mergulhado em convulsão social

Quando Maria Antonieta, esposa do rei Luís XVI, foi informada de que as camadas mais pobres da população francesa já não possuíam sequer pão para comer, ela teria dito a célebre frase: “qu’ils mangent de la brioche” (“que comam brioches”). As cabeças de ambos rolaram na guilhotina em plena revolução francesa. Recentemen­te, assim que o governo chileno majorou em 3,75% a tarifa do metrô em Santiago nos horários de pico, o ministro da Fazenda, Felipe Larraín, incorporou a rainha: deu a entender que os trabalhado­res poderiam acordar mais cedo para utilizarem esse meio de transporte com o preço normal. Nenhuma autoridade vai ser degolada no país, mas estamos vendo no que deu o descaso: o Chile está em chamas.

COMO AS JORNADAS DE JUNHO

Desde a defenestra­ção do ditador Augusto Pinochet e a redemocrat­ização, em 1990, o país é um dos mais estáveis da América Latina e apresenta invejáveis indicadore­s na macroecono­mia. Cabem, então, as perguntas: o que motivou a revolta dos chilenos? Por que a violência e a barbaridad­e de atos de vandalismo? Até a terça-feira 22, o Chile estava

sitiado por incêndios, depredaçõe­s e saques a supermerca­dos; nas ruas de Santiago, dez mil homens do Exército e da polícia reprimiam brutamente os manifestan­tes; já se contavam dois mil presos, centenas de feridos e pelo menos quinze mortos em setenta e duas horas. As respostas estão justamente na economia. O aumento da tarifa do metrô, de oitocentos para oitocentos e trinta pesos (aproximada­mente R$

4,80), foi somente a gota d’água em um somatório de fatores que vem desagradan­do consideráv­el parcela dos cerca de dezenove milhões de habitantes — e prova maior disso é que o presidente Sebastián Piñera voltou atrás, cancelou o aumento, pediu perdão, mas os protestos prosseguir­am. Situação bastante similar a que se viu no Brasil, em junho de 2013, quando o anúncio do aumento nas passagens de ônibus em São Paulo e no Rio de Janeiro detonaram numa bola de neve uma série de manifestaç­ões contra o governo.

Apesar de ostentar a maior renda per capita da América Latina (US$ 20 mil), a desigualda­de social é marcante no Chile, fruto dos altíssimos custos com educação e saúde públicas. A isso junta-se a pressão imobiliári­a, fazendo com que um a cada três chilenos maior de dezoito anos esteja endividado, de acordo com dados da Universida­de San Sebastián y Equifax. Quem amarga essa situação, em meio a uma eco

O ministro Felipe Larraín incorporou Maria Antonieta e ironizou os pobres. Ela perdeu a cabeça na guilhotina. Ele talvez nem perca o cargo

nomia que exibe muito bom cresciment­o de 2,5% ao ano, índice que provavelme­nte será mantido em 2019, com certeza engrossa o coro e os saques e as barricadas e as labaredas dos descontent­es. “A sociedade chilena suportava demandas latentes que não obtinham respostas do governo”, diz o analista político da Universida­de do Chile, Octavio Avendaño. Sob o slogan “#ChileAcord­ou”, protesta-se, assim, contra um modelo econômico radicalmen­te liberal (nada a ver com o saudável liberalism­o e conservado­rismo clássicos) que praticamen­te anulou as pensões e aposentado­rias (Piñera vai aumentá-las) e privatizou as instituiçõ­es de ensino e de saúde. A esmagadora maioria das aposentado­rias são inferiores a US$ 300, resultado do sistema de capitaliza­ção desenvolvi­do ainda nos tempos do governo de Pinochet. Por tal sistema, no qual os trabalhado­res vão montando poupanças individuai­s para quando se aposentare­m, a tendência é um rigoroso empobrecim­ento da camada mais idosa da população.

O FUTURO é UM MISTéRIO

O governo de Piñera é composto por profission­ais que operam com os grandes conglomera­dos econômicos, e o próprio presidente é constantem­ente acusado de favorecer os milionário­s pelo simples fato de ser um deles — a sua fortuna é estimada em 0,98% do PIB do país, pela avaliação da “Forbes”. “Existe um descontent­amento e o aumento das tarifas do metrô foi a faísca que desencadeo­u tudo”, diz o analista Roberto Méndez. Assim, para quem olha o Chile de fora, lá parece que se nada em mar de rosas — e, se assim achamos, dá para mensurar a caoticidad­e que se engole por aqui. Como se viu, não é bem assim: entre os chilenos há de fato rosas para poucos e espinhos para muitos. É bastante provável que Maria Antonieta jamais tenha dito a frase que a revolução francesa colocou em sua boca e citada no início dessa reportagem, e com certeza não a criou — ela já aparece na obra “Confissões”, de Jean-Jacques Rousseau, escrita em 1765, quando a futura rainha tinha somente nove anos de idade. Também é bastante provável que os protestos arrefeçam, mas o Chile não será a mesma ilusão de tranquilid­ade. O que vem pela frente? Fiquemos com o sociólogo Alberto Mayol, da Universida­de de Santiago: “mais uma vez o futuro do país é um mistério”.

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Grande parcela da população não se beneficia da economia estável no país: os incêndios, saques e depredaçõe­s: o governo entendeu o recado
LABAREDAS Grande parcela da população não se beneficia da economia estável no país: os incêndios, saques e depredaçõe­s: o governo entendeu o recado
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 ??  ?? PROTESTO Desde a ditadura de Pinochet, as Forças Armadas não reprimiam o povo: o mar de rosas secou
PROTESTO Desde a ditadura de Pinochet, as Forças Armadas não reprimiam o povo: o mar de rosas secou
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MEDO Piñera: pedido de perdão

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