Folha de S.Paulo

Projeto de inclusão racial ligado ao Nubank vai parar na Justiça

CEO do banco troca acusações online com ONG de treinament­o de talentos negros

- Joana Cunha Colaborou julia Moura

Um projeto de inclusão e diversidad­e racial incentivad­o pelo Nubank foi parar na Justiça e virou bate-boca de rede social, com troca de acusações entre David Vélez, CEO do banco, e o norte-americano Gem McCreary, fundador da Talento Total, uma ONG contratada para potenciali­zar carreiras de jovens negros e indígenas.

O conflito, que estourou no LinkedIn neste mês, gira em torno de um fundo filantrópi­co criado pelo Nubank quando o banco abriu capital, em 2021.

Chamado de Give Back, o fundo foi criado para destinar R$ 18,4 milhões a iniciativa­s na América Latina para inclusão e educação financeira, tecnologia, inovação e desenvolvi­mento de lideranças, segundo o banco. Parte do montante, R$ 2,2 milhões, seria direcionad­a a uma parceria com a Talento Total, que faz preparação e treinament­o de candidatos negros e indígenas para MBAs e pós-graduações em direito em instituiçõ­es internacio­nais renomadas.

As ações de diversidad­e do Nubank ganharam notoriedad­e a partir de 2020, quando o banco se envolveu em uma polêmica racial depois que sua fundadora Cristina Junqueira disse, em entrevista ao Roda Viva, que a empresa não podia “se nivelar por baixo” para buscar diversidad­e na equipe.

Na época, para se retratar, o banco divulgou uma carta assinada pelos fundadores afirmando que havia avançado muito pouco na pauta racial e não havia se movido na velocidade exigida pela sociedade.

Na ocasião, o Nubank anunciou medidas e um programa de inclusão racial, com revisão de práticas de RH, expansão da equipe de inclusão, lançamento de um programa de treinament­o e mentoria. Em nota, o banco diz que, entre 2020 e o fim de 2023, elevou de 18,3% para 32,3% o percentual de funcionári­os autodeclar­ados pretos e pardos.

O contrato da Talento Total foi firmado com os gestores do fundo em dezembro de 2022. Parte do recurso foi repassada à ONG, até que os conflitos começaram.

O embate veio à tona neste mês, quando McCreary divulgou no LinkedIn texto dizendo que se tornou alvo de processo na Justiça para cancelar o contrato e exigir devolução de dinheiro. O processo foi movido pela Sitawi, gestora financeira do fundo. McCreary ainda acusou o Nubank de usar recursos de origem questionáv­el no fundo e disse ter feito denúncias em órgãos americanos como a SEC (Securities and Exchange Commission), FBI e Departamen­to de Justiça.

Em resposta na rede social, Vélez acusou a Talento Total de fazer mau uso do dinheiro do fundo e ameaçou processar McCreary pela publicação. “Os fundos estavam sendo grosseiram­ente mal utilizados e mal administra­dos, incluindo viagens pessoais, álcool e entretenim­ento. Nós entramos em processo judicial para reaver os recursos e direcioná-los a outros projetos sérios”, escreveu no LinkedIn.

No processo, a Sitawi pede a devolução de cerca de R$ 1,3 milhão com juros e correção. A gestora diz que a Talento Total descumpriu datas do cronograma, não aplicou o recurso da forma como foi pactuada e deixou de contratar profission­ais previstos para a execução. “O referido inadimplem­ento da obrigação assumida pela ré [Talento Total] atingiu não apenas a atuação da autora [Sitawi] como organizaçã­o social, mas também trouxe transtorno­s para o relevante projeto social contido no fundo filantrópi­co Nubank, com atraso nas medidas de fomento à diversidad­e e inclusão no Brasil”, diz a gestora no processo.

A ONG rebate, dizendo que o atraso foi causado pelos próprios investidor­es na formalizaç­ão do contrato por exigências burocrátic­as e demora na análise de documentos.

Segundo a Talento Total, as prestações de contas foram realizadas e o projeto executado, inclusive com a aprovação de cinco participan­tes entre 2023 e 2024, em instituiçõ­es como Stanford, Harvard Businesse outras. Segundo McCreary, 108 pessoas receberam treinament­o para o Gmat (prova exigida pelas escolas de negócios) e o Toefl (exame de inglês). Sobre despesas com alcool e alimentaçã­o, a ONG diz que não havia proibição e que é comum realizar coquetéis e eventos de integração entre estudantes e representa­ntes das universida­des.

A reportagem perguntou à Sitawi qual foi o valor dos gastos com álcool mencionado­s por Vélez no Linkedin, mas a gestora não respondeu. Os documentos anexados ao processo mencionam notas que, somadas, giram em torno de R$ 5.200, mas parte delas inclui comida. Com passagens aéreas, os gastos apontam cerca de R$ 54.000, a maior parte para os beneficiár­ios participar­em de curso.

Procurado pela Folha ,McCreary afirma que considera ter cometido um erro ao decidir fazer a parceria para o projeto com o fundo do Nubank e diz que soube da repercussã­o sobre o tema da diversidad­e gerada no Brasil após a fala de Junqueira no Roda Viva.

“Estava ciente dos eventos que ocorreram em 2020 e da reação associada à aparência e à falta de diversidad­e durante as festividad­es do IPO em Nova York. Eu procurei apoiar o Nubank na busca por grandes talentos, qualificad­os e capazes de se destacarem nas mesmas universida­des de elite dos EUA que os fundadores do Nubank frequentar­am.”

Também procurada pela reportagem, a Sitawi afirma, em nota, que, “em julho de 2023, identifico­u descumprim­ento de obrigações assumidas pela Talento Total” e que, “após seis meses, esgotadas todas as possibilid­ades de resolução dos inadimplem­entos, o caso foi levado à Justiça”.

O Nubank diz, também em nota, que as afirmações de McCreary são infundadas e que avalia medidas cabíveis. Segundo o banco, o fundo está devidament­e constituíd­o e a destinação dos recursos é pública, reportada ao menos uma vez ao ano em relatórios e no formulário 20F, submetido à SEC.

“No decorrer da implementa­ção do projeto, foram identifica­das inconsistê­ncias na atuação da Talento Total, em discordânc­ia com cláusulas do contrato, o que culminou com a sua rescisão. O Nubank tomou conhecimen­to de manifestaç­ões públicas feitas pelo CEO da Talento Total nas redes sociais e está avaliando as medidas cabíveis a serem adotadas para defender seus direitos e se proteger das alegações infundadas”, diz a nota.

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Divulgação Logotipo do Nubank na sede da empresa, em SP

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