Folha de S.Paulo

Flor da lua

Lily Gladstone, que fez história no Oscar, amplia sua voz ao lançar filme sobre uma reserva indígena em confronto com o crime

- Alessandra Monteraste­lli

Um ano depois de marcar a história do cinema ao se tornar a primeira atriz indígena a vencer o Globo de Ouro e a ser indicada ao Oscar de melhor atriz por seu papel em “Assassinos da Lua das Flores”, de Martin Scorsese, Lily Gladstone está de volta às telas, estrelando “O Rito da Dança”, do Apple TV+.

Dirigido por Erica Tremblay, o filme acompanha Jax, interpreta­da por Gladstone, que vive na reserva indígena seneca cayuga, no estado americano de Oklahoma, e passa a cuidar da sobrinha quando sua irmã desaparece. A narrativa é sensível para a atriz, que não só tem usado sua voz para discutir os conflitos envolvendo os indígenas nos Estados Unidos, como nasceu e cresceu em uma reserva, a dos blackfeet, no estado de Montana.

Jax não tem um histórico criminal limpo, por causa de pequenos furtos que comete em lojas de conveniênc­ia. Por isso, corre o risco de perder a guarda da menina. Ao mesmo tempo, ela sai no encalço de pistas do sumiço da irmã, que parece estar relacionad­o à criminalid­ade que existe dentro da comunidade, vulnerável e isolada.

Usando uma saia preta de rendas coloridas nesta entrevista por vídeo, Gladstone, que participou do júri do Festival de Cannes, diz que se inspirou no primo para a personagem.

“Ele fez escolhas questionáv­eis, mas necessária­s, dadas as circunstân­cias em que estava quando jovem”, afirma, sobre a vida que o rapaz teve antes de trabalhar no programa de criação de búfalos da reserva. “Existe um ponto na vida em que você vira tio ou tia, percebe que há crianças observando você e então pensa que precisa ter algo para ensinar.”

Essa é a filosofia que move a atriz, de 37 anos. Ao ser questionad­a sobre como foi a imersão entre os seneca cayugas para o filme, ela se anima, imaginando crianças da comunidade assistindo ao longa e corrigindo possíveis erros seus de pronúncia ao falar a língua de outro povo. “Eles estarão falando sua língua fluentemen­te e por escolha própria”, diz. Hoje, a língua seneca cayuga corre o risco de sumir por ter não mais do que 20 falantes.

Gladstone diz estar bem familiariz­ada com as tradições que Jax ensina à sobrinha no filme. “Identifica­r plantas e colher, isso tudo fez parte da minha infância. Costumávam­os reunir ingredient­es para alguns de nossos idosos”, lembra.

Foi naquela época que ela começou a atuar no Missoula Children’s Theatre, programa itinerante de teatro infantil, e percebeu que as morais das fábulas ocidentais eram diferentes daquelas de seu povo.

Depois, a dinâmica competitiv­a e caótica dos testes de elenco em Nova York a desanimara­m. “Muitos papéis que fiz antes de ter uma carreira no cinema eram baseados no [método do] Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Esse tipo de trabalho é para que as comunidade­s oprimidas criem histórias baseadas em suas experiênci­as difíceis e criem um mundo imaginário, pelo qual possam lutar”, diz.

Antes da pandemia, Gladstone solidifico­u seu nome no cinema independen­te em produções como “Certas Mulheres”, em que contracena com Kristen Stewart. No entanto, com a pandemia e a paralisaçã­o do circuito, ela considerou desistir da carreira de atriz e se inscrever em uma vaga numa empresa que trabalha com a proteção de abelhas.

Tremblay, a diretora, que tem ascendênci­a seneca cayuga, lembra como ficou impactada quando assistiu a “Certas Mulheres” e viu Gladstone pela primeira vez. “Vi seu rosto e pensei ‘meu Deus, ela é indígena?’”, conta. “Com um olhar ou mexida de sobrancelh­a, Lily consegue contar a história de milhares de emoções.”

Foram os olhos carregados e a expressão um tanto ambígua de meios sorrisos que renderam a Lily Gladstone a indicação ao Oscar pela dilacerant­e interpreta­ção de Mollie em “Assassinos da Lua das Flores”, de Martin Scorsese.

Sua personagem é enganada pelo marido, vivido por Leonardo Dicaprio, que está envolvido na onda de assassinat­os que assombrou a comunidade osage no século passado, mas ela não encarna o estereótip­o da indígena heroica. Ela sofre e adoece, mas também é astuta ei rô nica—is toé, o oposto de indígenas que aparecem na tela só para sofrer.

Mesmo que ela tenha perdido o Oscar para a performanc­e de Emma Stone em “Pobres Criaturas”, 2.000 indígenas de diferentes lugares dos Estados Unidos se reuniram para celebrara indicação deGlads tone e ad eS cott George, que fez a trilha do filme de Scorsese.

Areação és in tom ática de um oeste americano que não foi justo com as populações indígenas nem na realidade, nem na ficção, onde foram limitadas a papéis em faroestes na era de ouro de Hollywood. Em 1973, Sacheen Littlefeat­her chegou a ser vaiada quando subiu a opal coda cerimônia para criticara representa­ção dos apaches feita pelo show business americano.

Se “Assassinos da Lua das Flores” tenta exorcizara culpa histórica dos americanos pelo genocídio dos povos originário­s com um épico, “O Rito da Dança” promove um olhar delicado sobre a complexa vida dessas populações nos dias de hoje. Jax e Rocky encontram acolhiment­o uma coma outra, algo comum de acontecer entre mulheres indígenas, segundo a atriz.

“É uma história de amor matrilinea­r”, diz Gladstone. Assim como na cultura blackfoot, ela afirma, a linguagem não separa a família em categorias.

“Tias etios são uma extensão dos pais. É um jeito de manter todos próximos e a nossa visão de mundo”, afirma a atriz. Ela lembrou que a maioria das línguas indígenas não tem gênero quando se reconheceu como uma pessoa não binária, mas que também usa pronomes femininos, no começo deste ano.

Em sua família, todos se reuniam com entusiasmo na casa da bisavó —de quem ela herdou o nome— para ouvir as histórias de vida da idosa.

Gladstone precisou aprender algumas palavras em seneca cayuga para o filme, o que ela considera um esforço de atuação a ser reconhecid­o assim como acontece quando um artista europeu ou americano faz um filme em outro idioma, como quando a alemã Sandra Hüller foi celebrada no ano passado por sua atuação em francês e inglês em “Anatomia de uma Queda”.

Com todo o frenesi em torno de seu sucesso, Gladstone não cansa de dizer em entrevista­s e podcasts que o reconhecim­ento de indígenas pela indústria audiovisua­l chegou atrasado. Segundo ela, é estranho e sintomátic­o que os povos nativos, contadores de histórias ancestrais, tenham ficado tanto tempo sem representa­ção nas telas.

Quando ganhou o Globo de Ouro, Gladstone começou o seu discurso em blackfoot, língua que sua mãe insistiu para que fosse ensinada na escolada reserva onde ela nasceu e cresceu. “Nessa indústria, atores indígenas costumam recitar suas falas em inglês”, disse a atriz, diante de uma plateia eufórica. “Digo isso para cada criança indígena que tem um sonho e se vê representa­do nas histórias contadas por nós e nas nossas próprias histórias.”

O Rito da Dança

Estados unidos, 2024. Direção: Erica Tremblay. Com: Lily Gladstone, Isabel Deroy-olson e Shea Whigham. 16 anos. Disponível no Apple TV+.

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Thea Traff/the New York Times A atriz Lily Gladstone
 ?? Thea Traff/the New York Times ?? A atriz Lily Gladstone
Thea Traff/the New York Times A atriz Lily Gladstone

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