Folha de S.Paulo

Tratado sobre a vingança

Antonio Candido indica ‘O Conde de Monte Cristo’ para burguesinh­os

- | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Wilson Gomes | qui. Drauzio Varella, Fernanda Torres | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti Mario Sergio Conti

jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

Antonio Candido publicou em 1952 um ensaio chamado “Monte Cristo ou da Vingança”, sobre o romance de Alexandre Dumas. Uma década depois, aumentou o texto, encurtou o título e o colocou em “Tese e Antítese”, livro esgotado há anos que é relançado.

“Da Vingança”, o título definitivo, pode levar a crer que se lerá um tratado ambivalent­e como a Bíblia: o Velho

Testamento prega “olho por olho e dente por dente”; o Novo, “se alguém bater em você numa face, ofereça-lhe a outra”. A freguesia que conclua se a vendeta é boa ou ruim.

A freguesia adora o autor de “Os Três Mosqueteir­os”, o mais vendido de seus 257 livros. Apesar de popularíss­imo, os críticos literários torcem o nariz para Dumas. Quando muito, exaltam o fato de ser justamente popularíss­imo, mas ressalvam que é um escritor menor, para leitores pueris.

A tensão entre a qualidade da obra e a quantidade de fãs ficou patente em 2002, quando o Estado francês enfiou Dumas no Panthéon, o santuário dos pais da pátria. Não o fez pela sua literatura, mas, como se comentou à farta na época, por ser mestiço, filho de uma escrava caribenha —o status quo, em suma, deu uma barretada à ideologia identitári­a e racial.

“O Conde de Monte Cristo” é o apogeu de Dumas. Umberto Eco o qualificou assim, em 1985: “É um dos romances mais arrebatado­res já escritos e, por outro lado, um dos romances mais mal escritos de todos os tempos, em qualquer literatura”. É o juízo crítico que ficou.

Já o juízo de Antonio Candido não ficou. Não obstante, o brasileiro antecipou em mais de 30 anos o italiano. É ler para crer: “A mediocrida­de não vem só do conteúdo e do tom folhetines­co, mas principalm­ente da prolixidad­e, das redundânci­as, dos diálogos espichados sem a menor vergonha para fazer a matéria render”.

Não se trata de uma copa do mundo de críticos, nem da patriotada de enaltecer um pupilo do Florão da América, mas “Da Vingança” é mais pertinente e denso que a introdução de Eco a “O Conde de Monte Cristo”. Contudo, o ensaio paga um preço, o de ser ignorado nas metrópoles, por ter sido escrito em português e nesta roça.

Antonio Candido pega o leitor pela mão e o guia pelas peripécias do herói do romance, Edmond Dantès. Com 19 anos, ele é um marinheiro esforçado que é promovido a capitão. O aumento de salário tornará possível que se case com a namorada, a suave Mercédès.

Deu ruim. Dantès é traído por amigos que o acusam, falsamente, de agente de Napoleão, destronado há pouco. É atirado num calabouço em If, a ilha na frente de Marselha. Desespera-se e deixa de comer. Prestes a morrer, descobre que um sábio, o abade Faria, está numa masmorra vizinha.

O velho padre lhe conta que há um tesouro ciclópico enterrado em outra ilha do Mediterrân­eo, Monte Cristo. Depois de 14 anos no cárcere, Dantès foge, desencava a fortuna e leva a cabo sua lenta vingança. Não tem nada de impulsivo; é lógico, obstinado, gélido.

Faria também lhe sugere a máxima que o norteia na liberdade: “Tudo o que somos ou temos priva de certo modo a outrem de alguma coisa que quer ser ou possuir”. Só é rico quem expropria o próximo. Só se vinga quem vence.

Monte Cristo encarna o arquétipo romântico do ser que se transforma em outro, seu antípoda. De pobretão, em trilionári­o; de plebeu, em aristocrat­a; de jeca, em leão da moda; de homúnculo, em superhomem; de solidário, em solitário; de vítima, em vingador.

O grande lance de “Da Vingança”, que brota da análise sensível do enredo e do estilo do romance, é postular que a desforra do conde representa a quinta-essência do individual­ismo, a postura que “foi, e de certo modo continua querendo ser, o eixo da conduta burguesa”.

A imagem que o neonobre faz de si mesmo “é parecida com a do grande industrial, que justifica o desencadea­r de uma guerra se ela for útil ao movimento dos seus negócios”. Monte Cristo é legião: uma classe.

Antonio Candido aconselha, de pilhéria, que os burgueses nutram seus filhos com doses maciças do romance, porque ele “leva às últimas consequênc­ias os princípios de competição e a apoteose do êxito individual, novas formas do direito do mais forte e fundamento­s éticos da era capitalist­a”.

No fim do livro, o ex-dantès se percebe isolado dos outros e da vida. Ensaia um recuo para atenuar o remorso pelos males que infligiu. Mas a má consciênci­a também integra o esquema romântico-burguês. Hoje, os condes de Monte Cristo são piedosos e fazem filantropi­a.

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Bruna Barros

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