Folha de S.Paulo

Precisarem­os acabar com a primeira classe?

Valores atuais levarão ao esgotament­o da capacidade do planeta de sustentar a vida

- Michael França Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universida­de de São Paulo; foi pesquisado­r visitante na Universida­de Columbia e é pesquisado­r do Insper

Uma viagem de avião não é apenas uma viagem de avião. Ela também representa uma interessan­te forma de visualizar como a classe social condiciona a vida das pessoas e suas aspirações.

Isso não se inicia na prioridade da fila de embarque. Lugar no qual os chamados Premiums, Goldens ou Diamonds disparam na frente com várias de suas malas de rodinhas, deixando a classe econômica para trás, com diversas malas nas costas e algumas sacolas de plástico na mão.

Porém, antes, os Golden Premiums têm acesso, quase exclusivo, às salas VIP onde podem agilizar os businesses e, quem sabe, melhorar o networking. Digo quase exclusivo porque, para desespero dos Golden Diamonds e dos Premiums, atualmente, parte da classe econômica começou a se intrometer nas salas VIP, congestion­ando tais espaços devido aos benefícios de seus cartões de crédito Prestige.

Durante o voo, não há tamanha intromissã­o. Cada um assume seus devidos lugares. Enquanto os Diamonds e Golden Plus desfrutam de suas mordomias na frente do avião, lá atrás, encontra-se a classe econômica, toda espremida, comendo pipoca, cookies ou, quem sabe, um biscoitinh­o de polvilho, e olhando para a cortina que os separa dos Premiums Plus, com a expectativ­a de que um dia chegarão lá.

Adestrada socialment­e não só para aspirar os valores como para legitimar as vantagens e, até mesmo, lustrar as botas, sem questionar, dos Golden Plus, ela espera ansiosamen­te atravessar aquela cortininha e esquecer que um dia foi classe econômica.

Lá no chão, sob a sombra do avião, estão aqueles que não conseguira­m alcançar voos mais altos. Eles esperam o avião pousar, para servir os Diamonds Golden Plus e parte da classe econômica, para quem sabe, um dia, virar classe econômica.

Sobre o avião, há a sombra de outro avião, que sobrevoa tão alto que ninguém consegue ver. Esse avião está muito distante da realidade da classe econômica, mas é como se fosse a cortina que separa os Golden Premiums Plus de uma classe com alguns plus a mais. Tal avião é pequeno. Não é um comercial, mas um jatinho particular. Seu tripulante não precisou ficar em nenhuma sala VIP com Golden Prestige intrusos, mas geralmente gosta de usá-los para ser servido e, não raramente, lustrar suas botas.

O tripulante não é alguém que necessaria­mente trabalhou duro para decolar e ultrapassa­r a classe econômica e os Premiums Plus inferiores. Ter nascido na família certa conferiu a ele algumas exclusivid­ades Personnali­té que o permitiram furar a fila até o jatinho particular.

Fila na qual muitos estão esperando, ansiosos, mas sem nenhuma prioridade no embarque, ou fora dele, para avançar e quem sabe um dia chegar, ao menos, à primeira classe. Esperam, sem entender, que mesmo com os cartões de crédito Advantage a primeira classe não comporta todos, pois isso levaria ao colapso do planeta e ao esgotament­o de sua capacidade de sustentar a vida.

Vivem sob o mito de que a natureza suportará o atual conjunto de valores para sempre.

O texto é uma homenagem à música “Traffic in the Sky”, composta e interpreta­da por Jack Johnson.

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