Folha de S.Paulo

Fatos teimosos

Risco de retorno ao negacionis­mo ambiental tem de ser combatido

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

Em certo sentido, escrever sobre ciência e ambiente durante o governo Bolsonaro era a coisa mais fácil do mundo. Diante da ignorância abissal e da sanha predatória despudorad­a, não havia grande dificuldad­e em apontar que 2 mais 2 dá 4. Infelizmen­te, as notícias sugerem que não falta gente no entorno do novo governo federal disposta a dizer que, veja bem, às vezes 2 mais 2 pode ser 5, por que não? Tudo em nome do “desenvolvi­mento” e da “soberania nacional”, é claro.

Não me entenda mal: continua existindo um abismo de diferença entre o bolsonaris­mo e o governo Lula. Mas quem conhece a dimensão do desastre que foi a instalação da usina hidrelétri­ca de Belo Monte sabe como são perigosos os apelos à “realpoliti­k” no caso da exploração petrolífer­a na foz do Amazonas, ou a possibilid­ade de que o ministério do Meio Ambiente e o dos Povos Indígenas tenham suas atribuiçõe­s esvaziadas.

A dificuldad­e em rebater o discurso do “veja bem” desenvolvi­mentista, que nunca deixou de ser bastante popular mesmo na esquerda do espectro político, é que ele parece razoável e moderado, especialme­nte se o interlocut­or não tem uma noção clara do tamanho do buraco civilizaci­onal que já cavamos. E, claro, não ajuda em nada o fato de que o Congresso brasileiro está repleto de gente que representa os interesses de uma economia baseada na extração bruta de riquezas naturais —seja as do subsolo, seja a proteína de origem animal ou vegetal.

Tudo isso, sem dúvida, encurta a margem de manobra do governo Lula. Mas não pode se transforma­r em licença para que a vitória eleitoral –contra o negacionis­mo científico e ambiental– dê lugar a uma nova e mais palatável versão desse mesmo negacionis­mo. Alguns fatos são inescapáve­is, por mais que a conveniênc­ia política esperneie e faça birra.

É simplesmen­te mentira, por exemplo, afirmar que o Brasil ainda não teve sua chance de “poluir para se desenvolve­r”, e que essa chance lhe está sendo negada por países desenvolvi­dos que lucraram com a devastação de seus ambientes. Quem começa com essa conversinh­a, neste ano de Nosso Senhor de 2023, é muito mal informado, ou desonesto, ou talvez ambas as coisas.

Quando consideram­os tanto a queima de combustíve­is fósseis quanto o que os especialis­tas chamam de “mudanças do uso da terra” —desmatamen­to, expansão agrícola e pecuária etc.—, o Brasil ocupa o quarto lugar entre as nações que mais emitiram gases-estufa, os causadores da emergência climática, de meados do século 19 até hoje. O país está atrás apenas de EUA, China e Rússia.

Isso significa (e não há como tergiversa­r a respeito sem virar um mentiroso) que o Brasil tem parcela importante nos desastres climáticos que já andam acontecend­o, e nos piores que hão de vir mesmo na melhor das hipóteses. A rigor, não haveria justificat­iva para abrir um só poço de petróleo a mais no chão ou nas águas territoria­is brasileira­s.

O mesmo vale para o desmatamen­to e a demarcação de terras indígenas. Os que reclamam com alguma variante das frases “É muita terra pra pouco índio/isso aí vai engessar a produção agrícola” o fazem confiando na falta de noção de escala do interlocut­or, porque espaço, por aqui, continua sobrando, mesmo que não se derrube mais nem um só ipê-amarelo. Que o digam os 140 milhões de hectares —ou mais de duas Franças— só de áreas degradadas, ou seja, quase não aproveitad­as para atividades agropecuár­ias.

Ainda que, neste momento, seja politicame­nte inviável pautar os planos de desenvolvi­mento do país com base nesses fatos, o mínimo que se espera, em termos de responsabi­lidade histórica e decência básica, é não negá-los.

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