Folha de S.Paulo

Um efeito de cor

- Muniz Sodré Professor emérito da UFRJ, autor, entre outros, de “A Sociedade Incivil” e “Pensar Nagô”. Escreve aos domingos

Nas ruas de Cachoeira, cada passante é parente socioestét­ico de Vini Jr. Conhecida como “cidade heroica” no Recôncavo Baiano, dos seus 33 mil habitantes, 84% autodeclar­ados negros. Dali partiram as tropas de lavradores, comerciant­es, escravos e forros que lutaram pela independên­cia da Bahia em 1823. Ativo centro cultural, é cidade-monumento, pelo casario barroco, igrejas, irmandades e comunidade­s afrolitúrg­icas.

Eleita pelo Republican­os, a atual prefeita é lavradora de profissão, curso médio completo. Sempre acompanhad­a por dois seguranças, mora em Salvador porque sobre ela pesam ameaças de morte. O motivo é único e claro como a cor da pele de onde procedem: ela é negra, a primeira a ocupar o cargo na cidade multicente­nária.

Vale frisar que essa aberração não é sulista, isto é, não é coisa de nenhum desses estados onde neofascism­o brota como pinhão nas árvores ou bergamota à beira dos cercados. Muito menos da Espanha, onde despertara­m zumbis franquista­s. Ocorre na matriz mais afro da federação. Planta daninha transgênic­a, racismo não escolhe terreno para medrar.

A questão volta à cena com as massivas agressões espanholas a Vini Jr., mas também com críticas ponderávei­s ao identitari­smo. Argumenta-se que a adesão das esquerdas ao movimento identitári­o (gênero, antirracis­mo etc) empurra o povo para a extrema direita. De fato, a esquerda clássica deslocou-se ideologica­mente da metafísica revolucion­ária, caucionada pelo operariado como classe histórica, para a trama da dominação constituíd­a por patriarcad­o e colonialid­ade.

O novo eco libertário fragmenta-se na dispersão das minorias. A comunicaçã­o progressis­ta não se apoia, como na ideologia obreira, numa unidade comparável ao mito do trabalho feito “essência perdurável do homem” (Marx). Simplesmen­te afrouxar a camisa de força das hierarquia­s raciais, sexuais e coloniais periga ressuscita­r o pior. Reacionári­o não discute: é só aparelho de ódio.

Mas perder discurso não é perder razão. É um aviso de que a justa argumentaç­ão não consegue transitar na pluralidad­e dos canais de diálogo, por estreiteza conceitual frente ao patriarcal­ismo, “poder habitado por um espírito-cão, um espírito-porco e um espírito-canalha” (Achile Mbembe). É o poder colonial de esvaziar o outro de seu conteúdo histórico. Contra isso é fraco o progressis­mo embalado pelos belos, mas abstratos, metadiscur­sos explicativ­os do mundo.

Assim o impasse identitári­o. Por um lado, atrai o ódio visceral de extremos, desde elites malévolas a neofascist­as em flor. Por outro, mobiliza estratos até agora silenciado­s. A prefeita e seus eleitores são bom exemplo: convite à nação brasileira e à Espanha a tomar um banho de Cachoeira.

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Jean Galvão

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