‘Escola Base’ e ‘Rota 66’ coroam onda de obras que discutem o fazer jornalístico
Erros e acertos da imprensa também têm sido esmiuçados no exterior em filmes como ‘Spotlight’
SÃo PAULo
No documentário “Escola Base – Um Repórter Enfrenta o Passado”, o jornalista Valmir Salaro lembra quando noticiou, no Jornal Nacional, em março de 1994, que quatro adultos estavam sendo acusados de abusar de crianças naquela escola de São Paulo. A queixa, comprovou-se depois, era falsa. Salaro se responsabiliza pela tragédia que virou do avesso a vida dos denunciados.
Alvos de linchamento, os acusados foram presos injustamente. Salaro diz que o desejo pelo furo jornalístico fez com que ele pulasse etapas de uma boa apuração. “Achava que tinha uma informação verdadeira, de interesse público, então tinha mais do que obrigação de divulgar”, afirma. É este caso que ele evoca no documentário lançado em novembro pelo Globoplay.
“Escola Base” faz parte de um extenso leque de filmes e séries que esmiúçam os bastidores do jornalismo. O problema é que o filme surfa na culpa de Salaro e o pinta como jornalista malfeitor em busca da redenção.
“O documentário é cruel porque eu também sou cruel comigo”, afirma o jornalista, que virou um dos principais rostos daquela cobertura.
“Fiz muitas reportagens e sempre fui um contador de histórias, um observador privilegiado. No documentário, sou o vilão da história. É um sentimento estranho.”
Para Lisandro Nogueira, professor e doutor em cinema e jornalismo, é sobretudo em filmes que jornalistas são vistos como heróis ou vilões.
“O cinema ajuda a construir a imagem do jornalista como aquele que tem uma missão a cumprir. Cria a ideia de que o profissional pode ser vilão também, num formato maniqueísta”, afirma.
Ironicamente, a impressão do professor é a mesma do próprio Valmir Salaro, apesar de ele se flagelar pelo ocorrido no caso Escola Base há quase três décadas. “Jornalista não é herói”, diz categoricamente.
Relembrar coberturas jornalísticas de casos polêmicos é uma onda fortalecida pela ascensão do “true crime”, gênero que leva às telas crimes famosos. Ivan Mizanzuk, criador do podcast que deu origem ao seriado “O Caso Evandro”, diz que o jornalismo deve ser responsabilizado pela conduta que assume em casos de grande repercussão.
“É inevitável que a imprensa seja um personagem atuante, que influencie, crie pressão e gere expectativa. Os ‘true crime’ precisam mostrar como a imprensa determina o rumo de uma investigação”, afirma.
É o que tenta mostrar a série “Rota 66: A Polícia que Mata”. Lançada também pelo Globoplay, a produção adapta um livro de Caco Barcellos que mostra como o jornalista descobriu e denunciou a existência de um esquadrão da morte dentro da Polícia Militar de São Paulo.
Com Humberto Carrão no papel do repórter, a produção adapta os fatos para deixar a trama mais sedutora, mas exibe um lado pouco glamouroso do jornalismo. Na série, Barcellos leva um soco no nariz quando começa sua apuração.
É possível encontrar semelhanças entre Salaro e Barcellos, diz Caio Cavechini, um dos diretores de “Escola Base”. “Há uma certa obsessão pelo trabalho. A gente vê isso na vontade que o Caco tem em chegar ao final daquela papelada. No caso do Valmir, essa obsessão é mais no sentido de ele sentir que poderia ter feito diferente”, afirma.
Cavechini, que além de documentarista é jornalista, compara produções audiovisuais sobre jornalismo àquelas estreladas por médicos. “O repórter precisa tomar decisões de imediato e estar em contato com histórias chocantes. Não tem como sair ileso de uma cobertura midiática. É a mesma coisa em um plantão médico”, diz.
Filmes sobre o tema empilham prêmios, caso do longa “Spotlight: Segredos Revelados”, que levou o Oscar de melhor filme em 2016 ao retratar um grupo de repórteres que investiga padres abusadores de crianças.
Dois anos depois, em 2018, a consagrada Meryl Streep foi indicada à categoria de melhor atriz da principal premiação do cinema por viver a dona do jornal The Washington Post em “The Post – A Guerra Secreta”, filme que debate o mercado jornalístico americano e a liberdade da imprensa. A obra também concorreu à estatueta de melhor filme.
“Colectiv”, documentário
Valmir Salaro repórter do caso Escola Base
“O documentário é cruel porque eu também sou cruel comigo. Fiz muitas reportagens e sempre fui um contador de histórias, um observador privilegiado. No documentário, eu sou o vilão da história. É um sentimento estranho
romeno indicado a melhor documentário e filme internacional no Oscar em 2021, parte do incêndio que consumiu a boate do título e deixou dezenas de mortos. Depois, mostra como repórteres esportivos descobriram um esquema de corrupção no ministério da saúde do país.
“Holy Spider”, filme que está em cartaz nos cinemas e foi elogiado em Cannes no ano passado, acompanha uma jornalista decidida a investigar o caso do serial killer Saeed Hanaei. Ele ficou conhecido por vagar pelas ruas de Mexede, no Irã, em busca de prostitutas e usuárias de drogas para matar.
O papel da imprensa na resolução —ou na falta de conclusões— de grandes crimes é discutido também em documentários sobre a ex-deputada Flordelis, condenada por matar o seu marido, e também na série “Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez”, que mergulha no assassinato da filha de Gloria Perez.
Além disso, estrearam no ano passado dois filmes sobre o caso Suzane von Richthofen. Naquele mesmo ano, Mizanzuk viu chegar às telas “O Caso Evandro”, série documental baseada no seu extenso podcast, que mudou os rumos da investigação sobre o desaparecimento de um menino de seis anos no Paraná.
“O Caso Evandro” não hesita em cutucar a forma como o jornalismo na época contribuiu para a prisão de duas inocentes acusadas de bruxaria. Trechos de entrevistas dadas na televisão e manchetes de jornal surgem na tela para montar o quebra-cabeça complicado do sumiço de Evandro.
A influência da imprensa estrangeira em casos polêmicos ganhou as telas também. O movimento MeToo, por exemplo, é tema de “Ela Disse, que levou aos cinemas a história real de duas repórteres do New York Times que apuraram as acusações de estupro e abuso sexual contra o produtor Harvey Weinstein.
“Os cineastas inteligentes abordam o jornalismo com poesia, além de mostrar sua importância e os problemas da profissão”, afirma Lisandro Nogueira, o professor.
Nem tudo é poético na profissão, como evidencia “Escola Base”. Eliane Scardovelli, uma das diretoras do filme, diz que a intenção era justamente essa. “Ao mostrar mais de perto o trabalho do jornalista, a gente contribui para tirar aquela imagem de Deus que o profissional tem. É um trabalhador que vacila.”