Folha de S.Paulo

‘Escola Base’ e ‘Rota 66’ coroam onda de obras que discutem o fazer jornalísti­co

Erros e acertos da imprensa também têm sido esmiuçados no exterior em filmes como ‘Spotlight’

- Guilherme Luis

SÃo PAULo

No documentár­io “Escola Base – Um Repórter Enfrenta o Passado”, o jornalista Valmir Salaro lembra quando noticiou, no Jornal Nacional, em março de 1994, que quatro adultos estavam sendo acusados de abusar de crianças naquela escola de São Paulo. A queixa, comprovou-se depois, era falsa. Salaro se responsabi­liza pela tragédia que virou do avesso a vida dos denunciado­s.

Alvos de linchament­o, os acusados foram presos injustamen­te. Salaro diz que o desejo pelo furo jornalísti­co fez com que ele pulasse etapas de uma boa apuração. “Achava que tinha uma informação verdadeira, de interesse público, então tinha mais do que obrigação de divulgar”, afirma. É este caso que ele evoca no documentár­io lançado em novembro pelo Globoplay.

“Escola Base” faz parte de um extenso leque de filmes e séries que esmiúçam os bastidores do jornalismo. O problema é que o filme surfa na culpa de Salaro e o pinta como jornalista malfeitor em busca da redenção.

“O documentár­io é cruel porque eu também sou cruel comigo”, afirma o jornalista, que virou um dos principais rostos daquela cobertura.

“Fiz muitas reportagen­s e sempre fui um contador de histórias, um observador privilegia­do. No documentár­io, sou o vilão da história. É um sentimento estranho.”

Para Lisandro Nogueira, professor e doutor em cinema e jornalismo, é sobretudo em filmes que jornalista­s são vistos como heróis ou vilões.

“O cinema ajuda a construir a imagem do jornalista como aquele que tem uma missão a cumprir. Cria a ideia de que o profission­al pode ser vilão também, num formato maniqueíst­a”, afirma.

Ironicamen­te, a impressão do professor é a mesma do próprio Valmir Salaro, apesar de ele se flagelar pelo ocorrido no caso Escola Base há quase três décadas. “Jornalista não é herói”, diz categorica­mente.

Relembrar coberturas jornalísti­cas de casos polêmicos é uma onda fortalecid­a pela ascensão do “true crime”, gênero que leva às telas crimes famosos. Ivan Mizanzuk, criador do podcast que deu origem ao seriado “O Caso Evandro”, diz que o jornalismo deve ser responsabi­lizado pela conduta que assume em casos de grande repercussã­o.

“É inevitável que a imprensa seja um personagem atuante, que influencie, crie pressão e gere expectativ­a. Os ‘true crime’ precisam mostrar como a imprensa determina o rumo de uma investigaç­ão”, afirma.

É o que tenta mostrar a série “Rota 66: A Polícia que Mata”. Lançada também pelo Globoplay, a produção adapta um livro de Caco Barcellos que mostra como o jornalista descobriu e denunciou a existência de um esquadrão da morte dentro da Polícia Militar de São Paulo.

Com Humberto Carrão no papel do repórter, a produção adapta os fatos para deixar a trama mais sedutora, mas exibe um lado pouco glamouroso do jornalismo. Na série, Barcellos leva um soco no nariz quando começa sua apuração.

É possível encontrar semelhança­s entre Salaro e Barcellos, diz Caio Cavechini, um dos diretores de “Escola Base”. “Há uma certa obsessão pelo trabalho. A gente vê isso na vontade que o Caco tem em chegar ao final daquela papelada. No caso do Valmir, essa obsessão é mais no sentido de ele sentir que poderia ter feito diferente”, afirma.

Cavechini, que além de documentar­ista é jornalista, compara produções audiovisua­is sobre jornalismo àquelas estreladas por médicos. “O repórter precisa tomar decisões de imediato e estar em contato com histórias chocantes. Não tem como sair ileso de uma cobertura midiática. É a mesma coisa em um plantão médico”, diz.

Filmes sobre o tema empilham prêmios, caso do longa “Spotlight: Segredos Revelados”, que levou o Oscar de melhor filme em 2016 ao retratar um grupo de repórteres que investiga padres abusadores de crianças.

Dois anos depois, em 2018, a consagrada Meryl Streep foi indicada à categoria de melhor atriz da principal premiação do cinema por viver a dona do jornal The Washington Post em “The Post – A Guerra Secreta”, filme que debate o mercado jornalísti­co americano e a liberdade da imprensa. A obra também concorreu à estatueta de melhor filme.

“Colectiv”, documentár­io

Valmir Salaro repórter do caso Escola Base

“O documentár­io é cruel porque eu também sou cruel comigo. Fiz muitas reportagen­s e sempre fui um contador de histórias, um observador privilegia­do. No documentár­io, eu sou o vilão da história. É um sentimento estranho

romeno indicado a melhor documentár­io e filme internacio­nal no Oscar em 2021, parte do incêndio que consumiu a boate do título e deixou dezenas de mortos. Depois, mostra como repórteres esportivos descobrira­m um esquema de corrupção no ministério da saúde do país.

“Holy Spider”, filme que está em cartaz nos cinemas e foi elogiado em Cannes no ano passado, acompanha uma jornalista decidida a investigar o caso do serial killer Saeed Hanaei. Ele ficou conhecido por vagar pelas ruas de Mexede, no Irã, em busca de prostituta­s e usuárias de drogas para matar.

O papel da imprensa na resolução —ou na falta de conclusões— de grandes crimes é discutido também em documentár­ios sobre a ex-deputada Flordelis, condenada por matar o seu marido, e também na série “Pacto Brutal: O Assassinat­o de Daniella Perez”, que mergulha no assassinat­o da filha de Gloria Perez.

Além disso, estrearam no ano passado dois filmes sobre o caso Suzane von Richthofen. Naquele mesmo ano, Mizanzuk viu chegar às telas “O Caso Evandro”, série documental baseada no seu extenso podcast, que mudou os rumos da investigaç­ão sobre o desapareci­mento de um menino de seis anos no Paraná.

“O Caso Evandro” não hesita em cutucar a forma como o jornalismo na época contribuiu para a prisão de duas inocentes acusadas de bruxaria. Trechos de entrevista­s dadas na televisão e manchetes de jornal surgem na tela para montar o quebra-cabeça complicado do sumiço de Evandro.

A influência da imprensa estrangeir­a em casos polêmicos ganhou as telas também. O movimento MeToo, por exemplo, é tema de “Ela Disse, que levou aos cinemas a história real de duas repórteres do New York Times que apuraram as acusações de estupro e abuso sexual contra o produtor Harvey Weinstein.

“Os cineastas inteligent­es abordam o jornalismo com poesia, além de mostrar sua importânci­a e os problemas da profissão”, afirma Lisandro Nogueira, o professor.

Nem tudo é poético na profissão, como evidencia “Escola Base”. Eliane Scardovell­i, uma das diretoras do filme, diz que a intenção era justamente essa. “Ao mostrar mais de perto o trabalho do jornalista, a gente contribui para tirar aquela imagem de Deus que o profission­al tem. É um trabalhado­r que vacila.”

 ?? Divulgação ?? Cartaz de divulgação da série ‘O Caso Evandro’
Divulgação Cartaz de divulgação da série ‘O Caso Evandro’
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil