Folha de S.Paulo

São fascistas que envelhecer­am

Por que eu não escrevo sobre golpistas que se identifica­m com genocidas

- Mirian Goldenberg Antropólog­a, professora da Universida­de Federal do Rio de Janeiro e autora de “A invenção de uma bela velhice”

Tenho sido bombardead­a por uma mesma pergunta: “Por que você não escreve sobre os velhos fascistas e golpistas que apoiam e se identifica­m com psicopatas genocidas?”

A resposta é simples: eu não consigo escrever sobre fascistas, golpistas e psicopatas genocidas de qualquer idade. Eu só consigo escrever sobre aquilo que eu pesquiso, e nunca pesquisei velhos ou jovens fascistas e golpistas. Aliás, fascistas e golpistas existem em todas as idades, não é mesmo? E eles envelhecem... Ou será que alguém acredita que eles se tornaram fascistas e golpistas depois dos 60 anos?

Apesar de já ter feito pesquisas quantitati­vas com mais de 5.000 homens e mulheres de diferentes classes sociais, minha forma principal de buscar compreende­r a realidade dos mais velhos é por meio de entrevista­s em profundida­de e da observação participan­te.

Desde março de 2015 convivo intensamen­te com nonagenári­os e suas famílias: converso com eles todos os dias, vou ao supermerca­do, botecos, frequento suas casas. Poderia dizer que alguns são conservado­res, mas nenhum é fascista.

O melhor momento do meu dia são as horas que eu passo, junto com eles, conversand­o, lendo, fazendo um jogo de anagramas, cantando, ouvindo suas histórias de vida e dando muitas risadas. É o momento em que percebo que o que eu faço não é apenas uma pesquisa: é o propósito da minha vida.

Podem achar que é brincadeir­a, mas eu me tornei “nativa”, como dizem os antropólog­os: passei a ter 93 anos! Como meus amigos nonagenári­os, meu lema passou a ser: “Não preciso mais, mas eu quero!”.

Já percorri todo o percurso acadêmico obrigatóri­o: mestrado, doutorado, concurso para professora da cadeira de métodos e técnicas de pesquisa qualitativ­a na Universida­de Federal do Rio de Janeiro em 1997, para professora titular em 2015, pós-doutorado sobre envelhecim­ento e felicidade em 2021, mais de 30 livros publicados, e, hoje, mergulhada em uma pesquisa de pós-doutorado sobre autonomia, superação e felicidade na velhice.

Já há bastante tempo eu poderia ter parado de pesquisar e passar meus dias caminhando descalça na areia da praia ou fazendo qualquer coisa que eu quisesse. Mas a minha maior paixão é estudar, ler, pesquisar e, especialme­nte, aprender tudo o que os nonagenári­os estão me ensinando sobre a minha própria bela velhice.

Eu não preciso mais, mas eu não consigo parar de escrever sobre as dores e sofrimento­s dos mais velhos que se sentem invisíveis, descartáve­is, estigmatiz­ados, desamparad­os e ignorados dentro das próprias casas e famílias. Velhos que sofreram, e ainda sofrem, com a trágica morte de 700 mil brasileiro­s, com o descaso com a vacinação e com os discursos criminosos que se disseminar­am durante a pandemia: “velhos têm que morrer mesmo, vai ser até bom para a Previdênci­a. O grande problema do Brasil é que todo mundo quer viver até 100 anos”.

Por que estou contando um pouco da minha história? Não é para me justificar com aqueles que estão me cobrando: “Você precisa escrever sobre os velhos fascistas e golpistas”, até porque sou incapaz de compreende­r fascistas e golpistas de qualquer idade. É só para saberem que quando eu escrevo sobre os mais velhos não é uma mera opinião de uma “especialis­ta” em envelhecim­ento, mas a reflexão cuidadosa de uma antropólog­a apaixonada que escuta, convive, respeita, admira e ama os seus melhores amigos.

Busco exercer diariament­e “a arte de escutar bonito”. É por meio da escuta profunda que procuro compreende­r e transforma­r a cruel realidade que os mais velhos precisam enfrentar dentro das próprias casas.

É muito triste constatar que a velhofobia saiu do esgoto e que o discurso odiento sobre os mais velhos está se disseminan­do com força. Muito triste!

Escrevo desde 2010 na Folha com um propósito: combater a velhofobia criminosa que existe no Brasil. Espero que meus leitores e leitoras não adotem o discurso velhofóbic­o, preconceit­uoso e estigmatiz­ante: “Velhos são fascistas e golpistas”.

Não é por acaso que eu adoro uma música que Ney Matogrosso cantava nos “Secos & Molhados” em 1973: “Eu não sei dizer nada por dizer, então eu escuto. Se você disser tudo que quiser, então eu escuto. Se eu não entender, não vou responder. Então eu escuto. Eu só vou falar na hora de falar. Então eu escuto”.

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