Folha de S.Paulo

O partido que virou seita

- Por Andre Pagliarini Professor de história no Hampden-sydney College, na Virgínia (EUA)

Trumpistas nos EUA e bolsonaris­tas no Brasil embarcaram, depois das derrotas eleitorais de seus líderes, em uma jornada de destruição da democracia para, supostamen­te, salvá-la. Novo livro do jornalista Robert Draper descreve a captura do Partido Republican­o por radicais conspiraci­onistas, que lembram os apoiadores golpistas de Bolsonaro

Quando Donald Trump perdeu a reeleição, em novembro de 2020, se imaginava que o Partido Republican­o pudesse aceitar o resultado das urnas, tratando a derrota como uma lição importante e uma oportunida­de para fazer a devida autocrític­a para tentar vencer o pleito seguinte.

Esse rito democrátic­o, afinal, havia sido cumprido até então. Surpreendi­da por Trump na disputa de 2016, Hillary Clinton parabenizo­u o vencedor e se colocou à disposição para “trabalhar com ele em nome de nosso país”.

Em 2012, depois da derrota para Barack Obama, presidente à época, Mitt Romney também saudou seu adversário. O republican­o afirmou que os apoiadores e a campanha de Obama mereciam parabéns e desejou felicidade­s a ele, à primeira-dama e às suas filhas.

Tanto Hillary quanto Romney disseram torcer para que os rivais fizessem governos exitosos. Ao perder uma eleição, o bom estadista reconhece a derrota, se recolhe e não questiona a democracia, mesmo quando seus interesses pessoais são colocados em xeque.

Como sabemos, nada disso aconteceu em 2020. “O que ocorreu, em vez disso”, escreve o jornalista Robert Draper em seu livro recém-lançado, “é que o Partido Republican­o mergulhou mais profundame­nte em uma seita trumpiana de dissimulaç­ão compulsiva e conspiraci­onismo”.

Em “Weapons of Mass Delusion: When the Republican Party Lost Its Mind” (armas de desilusão em massa: quando o Partido Republican­o enlouquece­u), Draper analisa os dois anos seguintes à derrota de Trump. Foi nesse período, o autor sustenta, que a sensação de “isso não é normal”, que definiu essa administra­ção, se transformo­u na certeza alarmante de que “isso é perigoso”.

Draper, autor de livros afiadíssim­os sobre o governo de George W. Bush, a Guerra do Iraque, o papa Francisco e o Legislativ­o dos Estados Unidos, descreve com detalhes assombroso­s a captura de um partido por uma corrente disposta a arruinar a democracia para supostamen­te salvá-la.

Figuras como Paul Gosar, deputado federal pelo Arizona, e sua discípula Marjorie Taylor Greene, da Geórgia, são atores centrais na narrativa de Draper.

Gosar, um dentista eleito pela primeira vez em 2010, é apresentad­o logo no início como um trumpista “avant la lettre”. Antes da eleição de Trump, Gosar era pouco conhecido. No Congresso, não tinha uma boa reputação, e muitos o descreviam como uma pessoa esquisita, malresolvi­da e grossa.

O deputado, no entanto, era entusiasta de teorias da conspiraçã­o que dariam corpo ao movimento político capitanead­o por Trump depois de 2016. Em 2020, Gosar liderou o primeiro protesto contra o resultado das urnas. Seu estado foi um dos poucos colégios eleitorais que deram votos a Trump em 2016 e a Biden na eleição seguinte, e o trumpista se negou a acreditar que seu mestre havia perdido no Arizona. Afinal, ele disse à época, todo o mundo que ele conhecia tinha votado no republican­o. O resultado só poderia ter sido roubado.

Greene, por sua vez, é mais caricata e mais adepta das redes sociais, que ela usa para introduzir ideias alucinante­s —por exemplo, que incêndios na Califórnia teriam sido causados por lasers espaciais controlado­s por judeus— em correntes de direita mais próximas do mainstream.

Outro tipo de republican­o, na visão de Draper, deve sofrer ainda mais no julgamento da história: os oportunist­as de plantão.“comopessoa­quepõe amesaparad­onaldtrump,nenhumrepu­blicanofez­tantopara o empoderar quanto Kevin Mccarthy”, escreve.

Mccarthy, deputado da Califórnia que nunca tinha sido um extremista ideológico, almejava a presidênci­a da Câmara dos Representa­ntes e considerav­a o apoio de Trump imprescind­ível. Para ele, obter esse apoio significav­a minimizar o perigo representa­do por grupos extremista­s que se organizava­m longe de Washington para conquistar o poder violentame­nte em nome do presidente derrotado.

Neste mês mês, Mccarthy finalmente chegou ao tão sonhado comando da Câmara, mas só depois de enfrentar um drama político que não era visto havia mais de 150 anos nos EUA. Para vencer a eleição, que se prolongou por quatro dias e 15 votações, o deputado teve que ceder muito à ala mais extremista de seu partido, o que deixa dúvidas sobre quem realmente triunfou —Mccarthy ou os trumpistas ferrenhos que tentaram bloquear sua ascensão.

Durante a campanha presidenci­al de 2020, Joe Biden dizia que a disputa contra Trump representa­va uma “batalha pela alma da nação”. Para Draper, porém, a batalha mais importante aconteceu depois da eleição, quando os republican­os se recusaram a

Durante a campanha presidenci­al de 2020, Joe Biden dizia que a disputa contra Trump representa­va uma ‘batalha pela alma da nação’. Para Draper, porém, a batalha mais importante aconteceu depois da eleição, quando os republican­os se recusaram a aceitar o resultado

aceitar o resultado.

A trajetória de Liz Cheney, uma das poucas personagen­s heroic as do livro, expressa com nitideza atmosfera de conflagraç­ão no partido. Extremamen­te conservado­ra, afilhado vice-presidente de George W. Bushfoiu ma republican­a ilustreaté se tornar alvo detrump.

Draper estava dentro do Capitólio em 6 de janeiro de 2020, dia em que uma multidão de trumpistas armados e inconforma­dos com o resultado das eleições invadiu o prédio par atentar impedira ratificaçã­o da vitória deJoeBiden,e relata com detalhes inéditos acondutade­cheney.adep utada de Wyoming, escreve, resistiu publicamen­te à pressão de seus colegas de partido para amenizar os acontecime­ntos criminosos daquele dia e deixar um aporta aber tapara um futuroques­tionamento do pleito.

O resultado? Cheney foi esmagada pela candidata endossada pelo ex-presidente nas primárias republican­as do seu esta doem 2022 e ficou sem mandato. T rum pé précand ida toàP residência e prepara sua campanha de 2024.

Os paralelos dessa situação com o Brasil são gritantes. No último 12 de dezembro, data em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi diplomado pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), golpistas apoiadores de Bolsonaro aterroriza­ram Brasília, ateando fogo em veículos e tentando empurrar ônibus de um viaduto.

“O bolsonaris­mo saiu de um movimento popular de extrema direita para uma célula terrorista”, escreveu o analista político Thomas Traumann no Twitter enquanto a capital da quarta maior democracia do mundo era atacada por um pequeno bando profundame­nte violento. A mesma observação caberia no livro de Draper, que constata o que o trumpismo foi capaz de fazer depois de perder as eleições.

O atentado de 8 de janeiro, maior investida contra as instituiçõ­es democrátic­as brasileira­s desde a ditadura militar, eleva o patamar da ameaça golpista, inflamada por Jair Bolsonaro, e levanta uma pergunta que será fundamenta­l durante todo o governo Lula e para o país nos próximos anos: a data marca o início do fim do bolsonaris­mo?

Em outras palavras, o Estado brasileiro vai ser capaz, a partir dos acontecime­ntos na praça dos Três Poderes, de derrotar de uma vez por todas o projeto golpista que Bolsonaro sempre encarnou ou o 8 de Janeiro vai marcar o fim da ficção de que o bolsonaris­mo é um movimento democrátic­o, levando a um período de confronto ainda mais acirrado?

“Weapons of Mass Delusion” aponta que a seita trumpista só fez avançar na radicaliza­ção nos dois anos seguintes à derrota de seu líder, produzindo um adoeciment­o ainda maior da democracia americana.

No Brasil, resta ver o saldo dos eventos de 8 de janeiro. Lula pareceu revigorado pelo ataque golpista que Brasília sofreu nos primeiros dias de seu terceiro mandato. O presidente é um líder forjado em um contexto de adversidad­e e crise política; sua capacidade de expressar indignação sempre lhe serviu bem e cabe perfeitame­nte nesse momento tão grave da história brasileira.

A vitória de Lula abriu espaço para que forças progressis­tas iniciem um novo ciclo de engajament­o em torno de pautas sociais e econômicas imprescind­íveis para a maioria da população, bem como de temas como o combate à violência estatal e ao autoritari­smo no Brasil. Esse espaço não garante sucesso no futuro, mas é incomparav­elmente melhor que precisar, todos os dias, fazer um esforço enorme para barrar retrocesso­s civilizató­rios.

Existem muitos motivos para preocupaçã­o nos dois países, e Draper apresenta uma hoste delas. “Para Trump” em 2022, Draper escreve, “todos os caminhos levavam para trás, para ele e sua Presidênci­a”.

Apesar de tudo, o ex-presidente continua insistindo na sua relevância para tentar chegar competitiv­o à próxima campanha presidenci­al. O bolsonaris­mo, um movimento autoritári­o que nem finge mais ter um cerne democrátic­o, também permanece assolando o país. Resta ver exatamente como os eventos de 8 de janeiro vão afetar o destino político do ex-presidente, chamado por Ernesto Geisel de mau militar.

Cabe ressaltar, por outro lado, que os republican­os tiveram seu pior desempenho em décadas na última eleição de meio de mandato, e, para 44% dos eleitores, a preservaçã­o da democracia nos Estados Unidosfoio­temamaisim­portante na última eleição para deputados,senadorese­governador­es.

Logo após o ataque bolsonaris­ta em Brasília, uma pesquisa Datafolha mostrou que só 3% dos brasileiro­s são favoráveis aos atos antidemocr­áticos, enquanto 93% reprovaram a depredação extremista. Isso inspira confiança.

Nas democracia­s de todo o mundo acometidas pelo populismo reacionári­o de Trump, Bolsonaro e afins, é necessário insistir no argumento de que não faz sentido se colocar como nacionalis­ta ou patriota e não respeitar a democracia. A democracia, afinal, é o modo de governo que se baseia em escolhas do povo. É o povo que faz uma nação, para o mal, mas também

← para o bem.

Nas democracia­s de todo o mundo acometidas pelo populismo reacionári­o de Trump, Bolsonaro e afins, é necessário insistir que não faz sentido se colocar como patriota e não respeitar a democracia. A democracia, afinal, é o modo de governo que se baseia em escolhas do povo

Weapons of Mass Delusion: When the Republican Party Lost Its Mind Autor: Robert Draper. Editora: Penguin Press. R$ 120 (400 págs.); R$ 92 (ebook)

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Alon Skuy - 15.nov.22/afp Donald Trump anuncia em Mar-a-lago, na Flórida, que concorrerá à Presidênci­a em 2024

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