Folha de S.Paulo

Debate sobre democracia incorporou luta antirracis­mo, marca de manifesto de 2022

- Angela Pinho

são paulo O lugar é o mesmo, e a inspiração, também. Mas o significad­o da palavra democracia no debate público se ampliou considerav­elmente entre a carta em defesa do Estado de Direito de 1977 e a de 2022.

A reivindica­ção da soberania da vontade popular permanece e está na raiz dos dois textos, mas o atual deixa claro que o mero respeito ao voto não basta. Articulada por nomes do mundo jurídico e já endossada por mais de 870 mil signatário­s, a carta que reage às investidas golpistas do presidente Jair Bolsonaro (PL) destaca também a agenda contra a desigualda­de.

“Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito”, diz o texto. “Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude.”

A cerimônia também deve ter um perfil mais diverso, com falas de pelo menos duas mulheres negras: a presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), Bruna Brelaz, 27, e a presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, Manuela de Morais Ramos, 19.

A presença de mulheres negras nas duas entidades é recente. Em 2021, Bruna se tornou a primeira mulher negra eleita para presidir a UNE nos mais de 80 anos da organizaçã­o. Manuela é a segunda líder da agremiação estudantil que completa 119 anos. A primeira foi Letícia Chagas, em 2019.

Manuela deve incluir a pauta antirracis­ta em sua fala. “A população negra é mais da metade do país, mas não vê essa representa­ção nos espaços de poder”, afirma. “A gente ainda tem no Brasil uma política muito familiar, de pessoas que chegaram a algum lugar porqueopai­ouoavôesti­veramlá.”

Na própria faculdade, ainda falta representa­tividade, ressalta ela. A bibliograf­ia dos cursos, diz, praticamen­te só tem homens brancos.

A desigualda­de também está marcada pela profusão de salas com quadros e espaços com nomes de homens brancos, com exceções conquistad­as após movimentos de estudantes e professore­s. A mais recente delas é a inauguraçã­o do anfiteatro José Rubino de Oliveira, primeiro professor negro da faculdade.

Sinal dos tempos em uma USP cujo perfil, desde a implementa­ção das cotas raciais, em 2018, mudou considerav­elmente. Em pouco mais de cinco anos, a proporção de ingressant­es autodeclar­ados pretos e pardos na universida­de cresceu de 17% para 25%.

Também recente é a incorporaç­ão da pauta antirracis­ta como agenda obrigatóri­a de governos, instituiçõ­es e empresas, afirma a historiado­ra e antropólog­a Lilia Moritz Schwarcz, autora de “Sobre o Autoritari­smo Brasileiro”.

Ela ressalta que os movimentos negros sempre atuaram nesse sentido. Mas a ideia de que não basta não ser racista, é preciso combater o racismo, entrou no debate público de vez após os protestos motivados pelo assassinat­o de George Floyd nos EUA, em maio de 2020, asfixiado por um policial.

Schwarcz acrescenta que o regime militar e o mito da democracia racial fizeram o país entrar tarde na agenda por direitos civis. O combate à ditadura, nesse sentido, foi colocado como uma prioridade em detrimento de outras causas.

De fato, o direito à igualdade perante a lei é citado na carta de 1977 sem destacar especifica­mente o aspecto racial, e em conjunto com outros direitos, como a propriedad­e, a inviolabil­idade do domicílio e o de não sofrer tortura.

Embora a luta contra o racismo tenha ganhado terreno no debate público, ainda há um longo caminho a percorrer. Isso é visível não só nos dados socioeconô­micos, mas também no aspecto mais comumente associado à democracia: a representa­ção política.

Estudo recente dos economista­s Sergio Firpo, Michael França, Alysson Portella e Rafael Tavares, do Insper, mostra que o percentual de pretos e pardosentr­edeputados­émuito menor do que seu peso na população em todos os estados.

Em artigo, eles citam a importânci­a da representa­tividade para melhorar a qualidade da democracia, ao aumentar a chance de implementa­ção de medidas concretas. “Grupos que não possuem representa­ção política adequada com o seu tamanho dificilmen­te serão capazes de colocar pautas de seu interesse como prioritári­as”, escrevem.

[ A cerimônia também deve ter um perfil mais diverso, com falas de pelo menos duas mulheres negras: a presidente da UNE e a presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto

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