Folha de S.Paulo

Coronavíru­s vindo de morcegos infecta quase 70 mil por ano, aponta estudo

No geral, apenas as pessoas que tiveram contato direto com os animais ou com seus fluidos corporais acabam ficando doente

- Reinaldo José Lopes

“Achamos que as pessoas que correm mais risco são as que têm contato com fezes, saliva, urina ou sangue de morcegos Peter Daszak zoólogo

sÃo carlos (sp) Todos os anos, quase 70 mil pessoas estão sendo infectadas por algum tipo de coronavíru­s vindo de morcegos no Sudeste Asiático, estima uma equipe internacio­nal de pesquisado­res. O número ajuda a dar uma dimensão mais concreta para o tamanho do problema de saúde pública representa­do pelo aumento das interações entre seres humanos e os mamíferos voadores —é muito provável que a Covid-19 tenha surgido dessa maneira.

Para sorte da humanidade, a quase totalidade desses casos é uma espécie de beco sem saída em termos epidemioló­gicos. Ou seja, em geral, apenas a pessoa que teve contato direto com morcegos ou seus fluidos corporais acaba ficando doente e, depois de algumas semanas, consegue se recuperar sem que o vírus seja transmitid­o para outras pessoas. No entanto, o acúmulo de casos, com o passar do tempo, aumenta as chances de que algum desses causadores de doenças adquira uma capacidade maior de infectar seres humanos.

Os métodos que permitiram estimar o tamanho desse risco estão descritos num artigo que acaba de sair no periódico científico Nature Communicat­ions. Um dos coordenado­res do levantamen­to é Peter Daszak, da EcoHealth Alliance, em Nova York, que também participa da equipe cujo trabalho tem apontado a provável origem da Covid-19 num mercado de animais silvestres em Wuhan, na China.

“Achamos que as pessoas que correm mais risco são as que têm contato com fezes, saliva, urina ou sangue de morcegos”, explicou Daszak à Folha. “Elas podem estar fazendo isso sem saber, tocando a urina ou as fezes dos animais numa caverna ou onde eles se alimentam à noite.”

“O risco também é alto para quem está envolvido com a caça e o processame­nto dos cadáveres dos morcegos e para quem trabalha no comércio e na criação de outros mamíferos silvestres que também carregam coronavíru­s derivados de morcegos”, diz ele. “Estamos falando de dezenas de milhões de pessoas nessa região.”

Entre essas espécies estão vários carnívoros de pequeno porte típicos da região, como as civetas, os cães-guaxinins e os furões-texugos. Estima-se que o mercado de criação dessas e de outras espécies selvagens movimente dezenas de bilhões de dólares na região anualmente.

Para chegar à estimativa de infecções anuais, Daszak e seus colegas levaram em conta, em primeiro lugar, a distribuiç­ão geográfica dos habitats de 26 espécies de morcegos que sabidament­e carregam em seu organismo coronavíru­s transmitid­os por via respiratór­ia, semelhante­s ao causador da atual pandemia e também de duas doenças que emergiram desde o começo deste século, a Sars e a Mers.

Há pelo menos dois grandes fatores ambientais que são importante­s para a presença desses bichos: florestas e abrigos calcários (com grutas onde eles podem morar), embora algumas espécies tenham colonizado regiões agrícolas e áreas urbanas.

Pensando apenas no número de espécies de morcegos que carregam coronavíru­s, as regiões sob maior risco são o sul da China, o leste de Mianmar e o norte de Laos. Juntando como requisitos a riqueza de espécies e a densidade populacion­al humana, o problema fica mais agudo no sul da China e em Mianmar, e passa a preocupar também no norte da Índia e na ilha de Java, na Indonésia.

Juntando esse dado sobre populações mais expostas com informaçõe­s sobre a presença de anticorpos (sinal de infecção por diferentes coronavíru­s) e a frequência de contato entre humanos e morcegos, a equipe chegou à estimativa de 66 mil infecções anuais. Dependendo dos parâmetros estatístic­os utilizados, o número poderia ser menor, em torno de 39 mil casos.

Não existem caminhos simples para reduzir o risco, segundo o especialis­ta. “Infelizmen­te, o comportame­nto humano é complexo, então a nossa estratégia também precisa ser complexa”, diz ele.

“Um bom começo é trabalhar com as pessoas que têm ocupações de alto risco — que coletam fezes de morcegos em cavernas para usar como fertilizan­tes ou na medicina tradiciona­l, que trabalham em fazendas e mercados com animais selvagens. Encorajar essas pessoas a usar equipament­os de proteção, lavar as mãos e evitar o contato com os animais pode ajudar. Estamos trabalhand­o com aldeões que vivem perto das cavernas para ensiná-los o valor desses animais, como evitar o contato e reduzir os riscos para a saúde deles, o que vai reduzir o risco para todos no planeta.”

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Ronny Adolof Buol - 8.fev.20/AFP Comércio de morcegos em mercado na Indonésia

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