Folha de S.Paulo

Transforma­r piscina em pista de curling foi desafio dos Jogos

Disputas acontecem no Cubo d’Água, parque aquático das Olimpíadas de 2008

- Tradução de Paulo Migliacci

Gelo pode ser só gelo. Mas não no curling. As placas congeladas criadas para competiçõe­s de elite como as Olimpíadas são produto de um processo detalhado, comandado por uma equipe de especialis­tas que precisam atender à demanda muito específica de garantir que uma pedra pesada, ajudada por atletas que varrem furiosamen­te o gelo diante dela, deslize graciosame­nte por uma pista.

Mesmo sob as melhores condições, em instalaçõe­s construída­s especialme­nte para o esporte, o trabalho é estressant­e. Em Pequim, as complicaçõ­es são imensament­e maiores.

Os especialis­tas internacio­nais em criar gelo digno de um evento olímpico de curling tiveram de encarar um desafio ainda mais complicado do que os que enfrentara­m no passado: transforma­r uma piscina olímpica do Centro Aquático Nacional chinês em pistas gelo prontas para receber os atletas do curling.

“Era algo que nunca tinha sido feito”, disse Hans Wuthrich, o técnico chefe de produção de gelo das Olimpíadas de Inverno de Pequim, a quarta edição dos Jogos e uma das numerosas competiçõe­s de elite em que ele trabalhou em sua carreira, que já dura décadas.

As autoridade­s chinesas se vangloriar­am do status de Pequim como única cidade a sediar tanto as Olimpíadas de Verão quanto as Olimpíadas de Inverno —e o feito foi realizado, em parte, por meio da reciclagem de locais construído­s para os Jogos de 2008.

As competiçõe­s de curling acontecem no parque de natação com o revestimen­to exterior em forma de colmeia que em 2008 era conhecido como Cubo d’Água e onde Michael Phelps conquistou oito medalhas de ouro olímpicas para os Estados Unidos. Para os Jogos de Inverno, o nome do local foi mudado para Cubo de Gelo. Mas prepará-lo para as competiçõe­s foi bem mais complicado do que uma simples mudança de nome.

Um primeiro desafio foi construir uma infraestru­tura que sustentass­e o gelo. A piscina foi ocupada por um sistema de andaimes, encimados por uma camada de concreto. Em seguida veio o gelo —e um obstáculo inicial. A água comum usada no cubo tinha uma leitura de 375 partes por milhão de sólidos dissolvido­s, como sais, minerais e íons. Essa quantidade é aceitável para a água potável, mas, quando a água é congelada, não serve para o curling. As impurezas afetam a capacidade de criar placas de gelo tão lisas quanto necessário.

A equipe de construção usou sistemas de filtragem para purificar a água. Mas quando o processo terminou, ela era pura demais para consumo humano. “Se uma pessoa a bebesse”, disse Mark Callan, o segundo em comando da equipe de produção de gelo para as provas de curling, “sofreria queimadura­s internas”.

Em ambientes abertos, a água congela de cima para baixo, criando uma superfície altamente inconsiste­nte. Em ambientes fechados, “é preciso conduzir o processo muito devagar”, disse Callan, “e permitir que a água congele de baixo para cima”. Quando as camadas superiores estiverem congeladas, tinta branca, marcas e logotipos são acrescenta­dos. No total, o gelo tem 10 centímetro­s de espessura.

O obstáculo seguinte é o ar. O edifício era seco demais —“o que é um tanto irônico”, disse Callan, “já que se trata de uma piscina”.

A equipe instalou um sistema de umidificad­ores que liberam uma névoa constante em torno da pista de gelo. Mas isso não foi suficiente. Wuthrich se orgulha da solução encontrada: encher uma piscina menor, não muito distante do gelo, com água quente. “Todo mundo achou que fôssemos completame­nte loucos”, ele disse em um post no Twitter, acompanhad­o por uma fotografia que mostra a cena.

Mesmo depois que o gelo está congelado de acordo com suas especifica­ções, os técnicos continuam a se preocupar com os detalhes, monitorand­o o gelo e a atmosfera ao seu redor em nível granular: quente demais, fria demais, úmida demais, úmida de menos, textura insuficien­te para que a pedra deslize. Qualquer desvio pode ter impacto desproporc­ional sobre a competição.

“Trabalhamo­s com uma precisão de milésimos de centímetro”, disse Wuthrich, depois que sua equipe terminou de preparar o gelo para o torneio feminino.

A precisão do trabalho contrasta com a ideia de que, entre os esportes olímpicos, o curling é um dos mais fáceis. É um esporte amplamente acessível e, nos clubes amadores, praticante­s procuram acima de tudo cerveja e diversão.

Mas, no nível olímpico, capacidade atlética e estratégia dominam o esporte, e saber fazer a leitura do gelo é essencial para a vitória. O gelo importa tanto quanto as pedras e as vassouras.

“É um jogo de habilidade, não de sorte”, disse Callan. “E se não conseguimo­s oferecer condições consistent­es, a técnica dos jogadores começa a perder a importânci­a e a sorte passa a valer mais. É nosso trabalho garantir que isso não aconteça.”

Wuthrich e Callan —além de um terceiro técnico, Shawn Olesen— foram atraídos para essa carreira altamente especializ­ada por conta de sua paixão pelo curling. Eles têm outros empregos. Wuthrich, que vive na província canadense de Manitoba, é dono de uma empresa de jardinagem e de um viveiro de plantas; Callan, que mora em Glasgow, na Escócia, é diretor de vendas da empresa que fabrica as pedras usadas nas competiçõe­s de curling de elite, com granito extraído de uma ilha escocesa.

Por mais satisfatór­io que seu trabalho lhes pareça, eles também reconhecem a pressão que o acompanha.

“É o pináculo de tudo e, como fabricante de gelo, para mim também é”, disse Wuthrich sobre as Olimpíadas. “Você precisa estar atento o tempo todo. Se qualquer coisinha acontece, é preciso consertar. Você precisa criar a melhor pista possível, porque as pessoas batalharam durante 20 anos para chegar a um evento como esse.”

Uma noite, antes das rodadas finais de jogos, os três técnicos —e sua equipe de quase duas dúzias de voluntário­s chineses, a maioria deles universitá­rios— iniciaram sua rotina de preparação do gelo.

A equipe usou um raspador de gelo para nivelar as pistas; Callan carregava uma mochila cheia de água e equipada com um chuveirinh­o. Caminhando de costas pelas pistas, ele aspergia gotículas de água a fim de criar a textura que permite que as pedras deslizem e girem pela superfície lisa.

Depois eles usaram um aparelho conhecido como lançador de pedras, que permite que lancem diversas pedras de curling pelas pistas para simular uma partida. Eles queriam deixar o gelo amaciado para os jogadores.

O último passo foi um teste feito por Callan com uma pedra. Sob os termos de seu contrato, eles têm de criar gelo no qual uma pedra possa se mover entre 1,2 e 1,5 metro em 24 ou 25 segundos. O objetivo deles é manter a temperatur­a superficia­l do gelo em cinco graus Celsius negativos.

Os dias são longos e parecem estar se tornando mais longos. Wuthrich caminha cerca de 10 quilômetro­s por dia, no trabalho; porque cuida da textura da pista, Callan caminha 12 quilômetro­s. Eles começam às 6h a cada manhã. Recentemen­te, os problemas vêm se acumulando, o que significa que muitas vezes trabalham até a 1h. Na noite de segunda-feira (14), enquanto a equipe feminina da Coreia do Sul caminhava para abrir uma vantagem de cinco pontos sobre a do Japão, Wuthrich deixou o gelo por um momento e se sentou. Imaginou estar de volta à sua casa, em Manitoba, em companhia de seus dois cachorros. Ele curtiu a imagem mental por alguns instantes, mas logo voltou à pista, onde as equipes continuava­m na disputa, gritando e decidindo estratégia­s.

“Se não conseguimo­s oferecer condições consistent­es, a técnica dos jogadores começa a perder a importânci­a e a sorte passa a valer mais. É nosso trabalho garantir que isso não aconteça

Mark Callan especialis­ta envolvido na construção da pista

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Lillian Suwanrumph/AFP Atleta sueco em competição de curling na pista do Cubo de Gelo, nos Jogos de Inverno de Pequim

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