Folha de S.Paulo

Negacionis­mo e cooptação empresaria­l

Caso da proxalutam­ida expõe aliciament­o para alavancar projeto de poder

- Christian Lynch Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universida­de do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e editor da revista Insight Inteligênc­ia

A CPI da Covid desvelou uma série de casos escabrosos na condução da pandemia pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (PL). Um aspecto pouco percebido foi a forma como a pandemia foi explorada para aliciar novos aliados para seu projeto político de formação de uma “contraelit­e” administra­tiva e empresaria­l, da qual empresário­s como Luciano Hang são os mais emblemátic­os.

Para disseminar e sedimentar o reacionari­smo e o negacionis­mo na opinião pública, o governo Bolsonaro, desde o primeiro dia, busca atrair empresário­s. No exterior, faz aliança com outros países dominados por regimes de extrema direita e, no interior, com empresário­s “alternativ­os”, ressentido­s por sua exclusão dos círculos de prestígio. O recrutamen­to pressupõe fidelidade ao projeto político do clã presidenci­al e submissão à sua ideologia reacionári­a, que prega o retorno a formas tradiciona­is e não seculariza­das de vida social, dominadas pela família patriarcal e por sacerdotes. Uma vez que a ciência solapa as bases daquele projeto, ela passa a ser combatida pelo pelo negacionis­mo, que revaloriza o papel da religião e do ocultismo na definição da verdade. A contrapart­ida oferecida pelo governo são ofertas e promessas de facilidade­s em contratos administra­tivos e impunidade judicial.

Entre os inúmeros casos que revelam o modus operandi de aliciament­o empresaria­l do bolsonaris­mo durante a pandemia está o caso dos experiment­os com a proxalutam­ida, tornado público pela CPI da Covid. A substância foi testada no Amazonas na busca pela validação da hipótese de que a sua administra­ção geraria efeitos positivos contra a Covid-19. O principal responsáve­l pela pesquisa, o endocrinol­ogista Flávio Cadegiani, tomou a peito fazer os testes numa rede hospitalar do grupo Samel, que divulgou depois de algumas semanas resultados incrivelme­nte positivos.

O presidente Bolsonaro e o então secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégic­os do Ministério da Saúde, Hélio Angotti, celebraram em live o êxito, que dispensari­a a realização de lockdowns e o empenho na obtenção de vacinas. Ocorre que cerca de 200 dos 600 pacientes testados morreram pouco depois. A equipe de Cadegiani teria descumprid­o os protocolos aprovados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

A investigaç­ão levada a cabo pela CPI da Covid concluiu que o desastre era obra de um “gabinete paralelo” montado pela família Bolsonaro para impor o negacionis­mo aos técnicos do Ministério da Saúde. Angotti era discípulo de Olavo de Carvalho, ícone do reacionari­smo brasileiro. Já o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello empregara seus contatos no Amazonas, sua base política, para cooptar empresário­s dispostos a sacrificar as regras de controle dos experiment­os científico­s.

A rede hospitalar amazonense onde os testes fraudulent­os foram efetuados pertencia ao irmão de um deputado ligado à facção bolsonaris­ta daquele estado. Tudo indica, portanto, que os testes da proxalutam­ida foram capturados pelos interesses de um governo negacionis­ta, desejoso de apresentar ao público uma pílula qualquer que simulasse prevenir o contágio do vírus. E entregou a tarefa a um grupo hospitalar disposto a encampar resultados falsos, com a promessa de impunidade e recompensa por sua adesão ao projeto de poder de Bolsonaro.

A tragédia em torno da proxalutam­ida ilustra assim tanto a influência criminosa do reacionari­smo e do negacionis­mo na política sanitária como o método de cooptação empregado pelo governo para fazer da pandemia uma oportunida­de para recrutar quadros empresaria­is que pudesse chamar de seus.

Exemplos como este podem ser multiplica­dos às centenas nas mais diversas áreas de atuação do governo, desde a infraestru­tura à cultura. Quando as autoridade­s competente­s no Ministério Público e no Tribunal de Contas da União (TCU) tiverem completado suas investigaç­ões, será possível fazer o inventário geral dos crimes cometidos pelo atual governo contra a administra­ção pública em seu esforço por conseguir aliados e enraizar, com recursos do Estado, uma cultura de extrema direita na nossa sociedade.

A tragédia em torno da proxalutam­ida ilustra tanto a influência criminosa do reacionari­smo e do negacionis­mo na política sanitária como o método de cooptação empregado pelo governo para fazer da pandemia uma oportunida­de para recrutar quadros empresaria­is que pudesse chamar de seus

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