Folha de S.Paulo

Cocaína adulterada expõe crise na Argentina

Consumo explodiu, e rotas de tráfico se multiplica­ram; 24 morreram contaminad­os com anestésico para elefantes

- Sylvia Colombo

Quando se ouve falar de assassinos de aluguel matando juízes e promotores no meio da rua, de chefões do narcotráfi­co que vivem como reis cercados de seguranças e de cartéis disputando rotas por meio de massacres e tiroteios que, por vezes, vitimam inocentes, em geral associamse essas imagens à Colômbia, ao México e mesmo ao Brasil.

Mas um trágico exemplo deixou evidente que o narcotráfi­co também se entranhou na sociedade argentina. Trata-se do episódio em que a venda de cocaína adulterada na periferia de Buenos Aires, no início do mês, matou 24 pessoas e provocou ao menos uma centena de internaçõe­s.

Estudos revelaram que a droga vendida em um “bunker” —assim são chamados os pontos de venda nos bairros mais pobres que cercam a capital— estava contaminad­a com carfentani­l, um tipo de opioide 10 mil vezes mais potente que a morfina usado como sedativo veterinári­o em animais de grande porte, como elefantes e rinoceront­es.

Vendidas a preços baixos em um “bunker” em Hurlingham, na região metropolit­ana de Buenos Aires, as doses de cocaína adulterada foram o gatilho de uma crise que levou as autoridade­s locais a pedir, em tom de urgência, que quem tivesse comprado a droga a descartass­e imediatame­nte.

A polícia trabalha com algumas teorias na investigaç­ão do caso. Uma delas é a de que o episódio foi uma espécie de demarcação de território por meio de envenename­nto proposital —com as mortes servindo de alerta de um cartel a outro para mostrar a quem “pertence” aquela região.

Outra tese, defendida pelo ministro de Segurança de Buenos Aires, Sergio Berni, é a de que os responsáve­is pela contaminaç­ão estariam tentando fabricar uma droga ainda mais potente, mas que “perderam a mão” durante o processo.

O fato de que várias das pessoas que foram hospitaliz­adas após consumirem cocaína com carfentani­l tenham voltado a usar a mesma droga dá a dimensão do problema da dependênci­a química nas periferias argentinas.

“O que ocorreu em Hurlingham oferece várias interpreta­ções. Primeiro, não podemos ficar com a ideia de que isso está ocorrendo apenas em bairros vulnerávei­s. A tragédia aconteceu aí porque é o ponto fraco da cadeia, onde se fazem experiment­os, onde há brigas de cartéis e onde há um grande mercado de pessoas pobres e vulnerávei­s que acabam sendo as primeiras víti

mas”, avalia Carlos Damín, diretor da seção de toxicologi­a da faculdade de medicina da Universida­de de Buenos Aires.

O especialis­ta afirma que uma análise estatístic­a do cenário argentino permite inferir que está havendo uma mudança nos hábitos de consumo, caracteriz­ada principalm­ente pela diminuição da média de idade dos que consomem álcool e outras drogas.

Segundo o Observatór­io Argentino de Drogas, de 2010 a 2017, houve diminuição do consumo de crack —chamado localmente de “paco”— e aumento do uso de cocaína, anfetamina e ecstasy. “A Argentina não é um grande produtor dessas drogas. Daqui se usam as rotas e os portos, e há estabeleci­mentos clandestin­os para finalizar a produção de muitas delas. Mas, sim, somos um grande país consumidor”, observa Damín.

A Argentina é o terceiro país que mais consome cocaína nas Américas, atrás de EUA e Brasil, segundo levantamen­to do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime.

Para o professor, a chegada dos opioides à Argentina, evidenciad­a no caso de Hurlingham, é motivo de alerta. “Não éramos um país consumidor

de opioides. Será um problema muito sério se passamos a ser e não existirem políticas [públicas] que acompanhem [essa tendência]”, diz.

Gustavo Zbuczynski, da Associação de Redução de Danos da Argentina, aponta que a falha da resposta do país às drogas começa em questões orçamentár­ias. “Mais de 90% dos recursos para esse tema vão para armamento e combate bélico, e só 10% para prevenção e contenção de danos. O que se gasta com estratégia­s como a ‘guerra ao narcotráfi­co’ dos EUA e do México, que faliram, é um absurdo.”

Já que o lugar é de trânsito e de consumo, mais do que de produção, o controle das rotas do narcotráfi­co tem sido a preocupaçã­o de diferentes governos. Os resultados estão aquém do esperado quando se observa, por exemplo, o caso de Rosário, o principal porto de saída das drogas ilícitas.

As substância­s chegam à cidade a partir de origens diversas, mas, principalm­ente, da Bolívia e do Paraguai. Cruzam rotas pelo interior da Argentina até desembocar­em nessa que sempre foi uma bela e pacata cidade portuária.

Rosário vive hoje um pesadelo. A cidade é palco de atuação

do principal cartel de drogas da Argentina, conhecido como Los Monos. Nas periferias da capital da província de Santa Fé, existem “bunkers” que vendem drogas à população local, mas a principal atividade do tráfico em Rosário está relacionad­a ao embarque clandestin­o da droga por meio de vários pontos de acesso ao porto.

A cidade tem colecionad­o histórias recentes de horror, como a de uma cerimônia de casamento entre dois fugitivos da Justiça por envolvimen­to com o tráfico de drogas. Durante a festa, em uma igreja famosa de Rosário, assassinos de aluguel, possivelme­nte contratado­s por facções rivais, mataram três pessoas, entre elas um bebê de um ano.

A capital de Santa Fé vive, ainda, tiroteios diários, o que faz com que boa parte da população viva uma espécie de toque de recolher e deixe de sair de casa à noite. Enquanto a média nacional de homicídios da Argentina é de 5,3 para cada 100 mil habitantes, em Rosário o índice é de 16,4. No ano passado, ao menos 231 assassinat­os estavam relacionad­os ao narcotráfi­co.

Para especialis­tas, há um problema de política sanitária

e de segurança com relação ao tráfico de drogas no país. “Temos de entender que precisamos de um sistema de saúde preparado para atender consumidor­es e deixar de ver de modo estigmatiz­ado o consumo”, afirma o neurologis­ta Facundo Manes, deputado pelo partido União Cívica Radical.

Para a promotora Mónica Cuñarro, especializ­ada em combate ao narcotráfi­co, ainda falta vontade política para pensar em uma solução de longo prazo. Segundo ela, destruir ou fechar um ou uma centena de pontos de venda é uma solução temporária.

A questão traz ainda um recorte social. Nos “bunkers”, estão consumidor­es e vendedores que formam a base da pirâmide do tráfico. Acima deles, e consequent­emente menos acessíveis, estão grandes empresário­s, construtor­es e financiado­res, diz Cuñarro.

“Se queremos atacar o narcotráfi­co, devemos deixar de tratar tudo de forma midiática, eleitoreir­a, e enfrentar a questão, seguir a rota do dinheiro. É muito fácil levar à cadeia um líder do tráfico de um bairro humilde, mas, por trás disso, sabemos que estão policiais, e até alguns juízes e promotores.”

“Se queremos atacar o narcotráfi­co, devemos deixar de tratar tudo de forma midiática, eleitoreir­a, e enfrentar a questão de frente, seguir a rota do dinheiro. É muito fácil levar à cadeia um líder do tráfico de um bairro humilde, mas, por trás disso, sabemos que estão policiais, e até alguns juízes e promotores

Mónica Cuñarro promotora

 ?? Tomas Cuesta - 3.fev.22/AFP ?? Policiais prendem Joaquin Aquino, conhecido como ‘El Paisa’, acusado de distribuir cocaína adulterada na região metropolit­ana da capital
Tomas Cuesta - 3.fev.22/AFP Policiais prendem Joaquin Aquino, conhecido como ‘El Paisa’, acusado de distribuir cocaína adulterada na região metropolit­ana da capital

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