Folha de S.Paulo

Na série ‘Get Back’, Peter Jackson propõe outra perspectiv­a para o fim dos Beatles

- Ben Sisario Tradução de Paulo Migliacci

É uma manhã de inverno em janeiro de 1969 e três dos quatro Beatles estão reunidos em um estúdio de cinema em Londres; as câmeras estão rolando. “Lennon está atrasado de novo”, diz Paul McCartney, sem surpresa.

Ringo Starr e George Harrison estão sentados diante dele e parecem grogues. McCartney começa a tocar e cantar, procurando inspiração. Em poucos minutos, uma melodia familiar emerge. “Get back”, ele canta, em um uivo contido. “Get back to where you once belonged.” Em um passe de mágica, um clássico dos Beatles começa a se formar.

Mais tarde, os quatro se acomodam e resmungam. A banda tem planos mal definidos para um especial de TV, mas a maioria parece encarar a perspectiv­a com medo. Lennon declara que “comunicaçã­o” com uma audiência é seu objetivo, e McCartney desafia os colegas a demonstrar algum entusiasmo. Harrison deixa escapar em voz alta que “talvez seja hora de um divórcio”.

Essas duas cenas em “The Beatles: Get Back”, série documental de Peter Jackson, encapsula os lados do período mais contestado na história da banda —a criação artística e os conflitos que conduziram à dissolução dos Beatles.

“É mais ou menos a realização daquele sonho impossível dos fãs”, disse Jackson, que trabalhou por quase quatro anos em uma sala de edição.

“Eu queria poder viajar em uma máquina do tempo e me posicionar no cantinho do palco”, ele disse. “A máquina do tempo agora existe.”

O filme também é uma nova rodada de um debate duradouro. A jornada da banda em 1969 começou com intensa pressão para que eles realizasse­m um show inovador e terminou com algo nada conceitual —um show sem aviso, no topo de um edifício.

O período já é tema de “Let It Be”, de 1970, de Michael Lindsay-Hogg. Com o tempo, o filme ganhou a reputação de ser um registro tristonho do colapso da banda. Mas a narrativa vem sendo contestada.

O filme foi editado a fim de mostrar o máximo possível de desânimo. “Abbey Road”, o último LP dos Beatles por ordem de gravação, foi registrado depois de “Let It Be” mas lançado antes. Gravações piratas mostram uma mistura de prazer e frustração de quem está no take 24 de uma faixa.

A existência de “Get Back” é um sinal de que a história continua aberta a interpreta­ções e narrativas alternativ­as. Jackson obteve acesso a cerca de 60 horas de imagens inéditas, fornecidas pela Apple Corps, a empresa dos Beatles, e não foram impostas restrições. A instrução foi só a de restaurar o filme e contar a história completa.

Os Beatles aceitaram com agrado a maneira pela qual Jackson volta a contar a história. Mas ele diz que a banda não influencio­u seu trabalho.

“Todo mundo acha que vamos passar por cima das controvérs­ias”, porque os Beatles autorizara­m o filme. “Mas na verdade é o oposto. Mostrar tudo que Lindsay-Hogg não pôde em 1970.” As cenas com os amigos brincando e criando saltam aos olhos.

As imagens restaurada­s ajudam a definir os contornos de uma história de ansiedade e conforto. Auxiliares servem vinho; Yoko Ono pinta em caligrafia japonesa, enquanto Lennon e McCartney zoam a gravação de “Two of Us” com sotaques bizarros.

Mas as brigas se agravam tanto que começa a parecer milagroso que os Beatles ainda consigam se manter unidos. Em dado momento, Harrison larga a banda, irritado. Depois, os demais fazem uma jam session barulhenta. Starr quase destrói a bateria. Ono está no microfone e uiva até um clímax selvagem. A perspectiv­a da dissolução da banda paira por todo o filme.

Em alguma medida, “Get Back” e o “Let It Be” original são como referência­s em um estudo da verdade. As imagens mostram o fim dos Beatles ou a história entendeu o período erroneamen­te? A banda continuava alegre, ou os integrante­s não suportavam mais a companhia dos colegas? Talvez todas as anteriores.

McCartney escreveu que o filme original era “bem triste, porque lidava com a separação de nossa banda, mas o novo filme mostra a camaradage­m e o amor que nós quatro sentíamos uns pelos outros”.

Lindsay-Hogg acredita que talvez até os Beatles venham interpreta­ndo “Let It Be” erroneamen­te. “Ninguém vê o filme há muito tempo”, ele declarou. “Ele tendia a ser confundido com o momento da dissolução da banda.”

Os Beatles não se separaram em janeiro de 1969. No ano, gravaram “Abbey Road”, com muito cuidado. Se houve um culpado pela dissolução, foram os conflitos de negócios, quando a banda entrou em disputa quanto a quem a deveria representa­r.

Os problemas são prenunciad­os com a menção de um nome —Allen Klein, um empresário que chegou poucos dias antes do show ao topo do edifício para oferecer seus serviços. Lennon, Harrison e Starr assinaram com Klein; McCartney se recusou, e essa cisão jamais foi resolvida.

“Get Back” parece conter todas essas disputas e o prazer de ver os Beatles só tocando música. “Não há mocinhos no filme. Não há bandidos”, disse Jackson. “É só uma história humana.”

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