‘Brasil regrediu, e governo vai sair gastando’, lamenta um dos pais da regra do teto
Para o economista Marcos Mendes, movimentações recentes de Bolsonaro e Guedes apontam uma mudança do regime fiscal
são paulo Considerado um dos pais do teto de gastos, o economista Marcos Mendes, 56, avalia que o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mudou de tática. Trocou os balões de ensaio, em que mandava sinais ao mercado de abandono da prudência fiscal, pela simples ruptura, ao deixar claro o drible ao teto de gastos.
A decisão do governo de mudar a regra que corrige o teto, de forma retroativa, abrindo espaço para mais gastos, é vista por Mendes como o fim da medida constitucional que ele ajudou a criar.
O saldo disso será um horizonte de mais incertezas na economia, redução de investimentos, aumento da inflação e mais dificuldade de superar a crise, diz ele, que é pesquisador associado ao Insper e colunista da Folha.
Para Mendes, as movimentações do governo contra o teto sinalizam uma mudança de regime fiscal, com a volta para uma antiga prática —gastar sem controle. “Entrou dinheiro, vamos encontrar algo para gastar e vamos gastar mesmo o que não tivermos. Não vamos ter nenhuma ferramenta contrária a esse tipo de irresponsabilidade”, afirma.
O cenário, diz, se reflete nas reações dos últimos dias: queda da Bolsa, alta do dólar, renúncia de secretários do Ministério da Economia e um aumento do temor, por parte de analistas, de que o governo continuará tomando medidas, como o Auxílio Brasil, para buscar aumentar a popularidade do presidente até 2022, quando Bolsonaro deve tentar a reeleição.
Mudança de regime fiscal
O teto de gastos foi rompido, perdeu totalmente qualquer potência que tinha para guiar a política fiscal. O grande fato que ocorreu na quinta-feira [21] foi que se estabeleceu uma mudança de regime fiscal. O Brasil regrediu ao regime anterior, em que a regra era gastar o máximo que você puder. Entrou dinheiro, vamos encontrar algo para gastar e vamos gastar mesmo o que não tivermos. Não vamos ter nenhuma ferramenta contrária a esse tipo de irresponsabilidade. Em vez de o governo suavizar os ciclos econômicos, ele vai passar a fazer o oposto.
O teto era uma forma de segurar a despesa e já vinha dando resultados, a receita estava melhorando. Rompendo isso, o governo agora vai sair gastando. A economia vai ganhar volatilidade e mais incerteza.
Riscos e inflação
É um regime que só sobrevive quando o governo aumenta a carga tributária, mas ela já está no limite. Para cada porcentagem de carga a mais, mata-se uma série de negócios na economia, cria-se pesos mortos e impede-se o florescimento de negócios.
Já estamos com a dívida pública em um patamar elevado e isso facilmente sairia de controle. Esse novo regime gera mais juros, risco de aumento tributário, aumento da incerteza e redução de crescimento do país.
Como a capacidade de aumentar tributação e endividamento se esgotou, a tendência é que a inflação suba mais e eles comecem a fazer gastos por meio de bancos públicos. O saldo vai ser mais volatilidade, menos geração de empregos e mais inflação.
Auxílio Brasil
Um programa desse tipo envolve muitos detalhes, como bom cadastro e estrutura de dados, busca ativa das pessoas em situação vulnerável. O Brasil tem tudo isso já montado, poderia ser construído um programa focado nos mais pobres e com uma poupança para as pessoas que estão sujeitas a volatilidade de renda. Um programa eficiente, a um custo mais baixo, seria possível, até pela revisão de programas desenhados antes e que hoje não fazem mais sentido.
O que governo quer fazer tem um desenho ruim e sem detalhes definidos. Há um potencial enorme de conflito entre os vários programas dentro desse Auxílio Brasil, que ainda vão precisar ser regulamentados.
A opção do presidente foi por anunciar alguma coisa que dê voto e fora da capacidade de pagamento do Estado.
Fim dos balões de ensaio
O que vinha acontecendo desde o ano passado eram balões de ensaio. Quando queriam criar um programa, que tiraria os investimentos públicos do teto de gastos, havia uma tensão no mercado, vários economistas criticavam e o governo recuava. Com a tentativa de calote de precatórios foi a mesma coisa.
Mas desde que o centrão capturou a coordenação política, o interesse do governo prevaleceu sobre o esforço da Economia. O presidente também entrou em desespero, ao ver a eleição chegando e sua popularidade caindo. Antes, havia um pudor de ser taxado como o ‘coveiro do teto de gastos’. Isso acabou.
Mercado
É preciso ter uma lista de prioridades e respeitar a capacidade de financiamento do Estado. Aquele dinheiro dado em transferência de renda vai representar mais imposto ou mais inflação, que lá na frente, vai tirar dinheiro dessas pessoas, de todo modo? Não existe um governo que só faça o bem e um mercado que não queira pagar R$ 400 aos mais pobres. Os investidores só não vão deixar o governo fazer o que ele quiser, para depois a inflação subir e o dinheiro deles perder valor.
Não acredito que exista mercado aliado ao governo. O dito mercado são várias entidades, empresas, lojas, cadeias de supermercado, não apenas o mercado financeiro. Não existe uma entidade que é favorável ou contrária a um presidente, mas as pessoas fazem contas. Em um ambiente de mais incerteza, as empresas investem menos. Se há chances de novas guinadas bruscas, todo o mundo se protege —isso reduz investimentos e inovação.
A única atratividade que o Brasil vai ter vai ser aumentar muito os juros e tentar atrair algum capital especulativo, que fica aqui um pouco e depois se vai embora.
Centrão no controle
O presidente, no começo do mandato, optou por confrontar o Congresso em vez de formar uma base. O Legislativo se antecipou e capturou o Orçamento. Conforme a situação política do presidente se deteriorou, ele entregou o comando do governo ao Congresso, e o centrão tomou conta da articulação política. Passaram a distorcer as propostas de reformas e a política econômica perdeu o rumo por completo.
Esse desmonte do teto de gastos é uma consequência disso. O que tem ditado a política econômica é o desejo do centrão de acumular votos e Bolsonaro é refém disso, por ter perdido o controle do governo.
Paulo Guedes
Guedes trabalhou em um ambiente difícil, em um governo de baixa qualidade. Já era complicado antes. Só por resistir alguns anos já tem algum mérito. Mas faltou objetividade nas propostas da equipe econômica.
A cada momento, ele vinha com uma ideia genial: reduzir o número de municípios, recriar a CPMF, montar um fundo de empresas estatais para conseguir recursos. Essas ideias eram divulgadas, mas as propostas não apareciam. A regra número um do gestor público é não anunciar nada antes de pronto, só depois de ter uma proposta desenhada, conversada com os atores políticos. Houve muito voluntarismo e faltou pé no chão.
Guedes está muito fragilizado. Ainda faz diferença se ele continua ou não no comando da pasta, mas a permanência ou saída dele se tornou menos relevante.
Debandada
Se tem uma coisa que é comum entre os secretários que se demitiram é o alto grau de profissionalismo e de espírito público. São servidores dedicados e que sabiam o que estavam fazendo. Mas bateu no limite do aceitável.
O [ex-secretário especial do Tesouro e Orçamento] Bruno Funchal desenhou todo um sistema contábil de aperfeiçoamento das contas dos municípios; o [ex-secretário-adjunto do Tesouro Nacional] Rafael Araújo entende tudo de Fies e dos detalhes das contas do Tesouro; o [ex-secretário do Tesouro Nacional] Jeferson Bittencourt conhece muito de bancos públicos. Todos eles são funcionários exemplares, saíram para não ter de concordar com o que ainda está por vir.
“
O presidente entrou em desespero, ao ver a eleição chegando e sua popularidade caindo. Antes, havia um pudor de ser tachado de ‘coveiro do teto de gastos’, isso acabou