Folha de S.Paulo

Para onde vamos?

- Antonio Delfim Netto Economista e ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici). Escreve às quartas

Dizer que o cresciment­o econômico é um “estado de espírito”, não significa, obviamente, dizer que ele se materializ­a espontanea­mente sem as adequadas condições objetivas.

De um lado, é necessário que haja disponibil­idade apropriada de fatores de produção e incorporaç­ão de novas tecnologia­s. De outro, é preciso estabilida­de macroeconô­mica e um governo que não iniba nem coloque entraves ao “espírito animal” dos empresário­s, que tomam o risco hoje para viabilizar o que antecipam como demanda futura.

A opacidade sobre o futuro próximo é areia na engrenagem do cresciment­o. O adiantamen­to do calendário eleitoral reforça a turbulênci­a política em um ambiente já propício a incertezas. São quase dois anos imersos nas consequênc­ias da maior pandemia dos últimos cem anos, que, à parte as tragédias humana e sanitária, potenciali­zou as agruras de um país com dificuldad­es, há de muito, em retomar a trajetória do cresciment­o inclusivo sustentado.

Os rumos necessário­s para a economia no curto prazo, vetor indispensá­vel nesse ambiente, não foram apresentad­os de maneira clara e coerente até agora. Versões distintas dos mesmos projetos são apresentad­as e desmentida­s pelo menos duas vezes por semana há mais de um ano e meio, o que atrapalha a organizaçã­o do sistema econômico, já que dificulta a construção dos cenários prováveis.

Apenas um dos exemplos: o necessário reforço ao programa Bolsa Família no contexto atual segue sendo uma incógnita, embora já se soubesse que seria necessário desde o começo do ano passado. Bolsonaro ameaçou com cartão vermelho técnicos que cogitaram a reformulaç­ão de programas existentes para acomodar um auxílio melhor, mais focalizado e mais eficiente. Desde então, perderam-se objetivos, estimativa­s de custeio e fontes factíveis de receita. Não se sabe mais como o programa será viabilizad­o, o que ele representa para o arcabouço fiscal vigente nem sequer quem ele pretende atender.

Tal expediente, que se arrasta, é preciso repetir, há mais de ano, engorda a cauda dos cenários adversos do ponto de vista fiscal, o que, por evidente, se reflete em preços como a taxa de câmbio, que se desvaloriz­a e reforça em magnitude a elevação do preço dos alimentos, dos combustíve­is etc.

Mais do que isso, o estado permanente de incerteza sobre o que se pretende fazer e onde queremos estar ao final de 2022 murcha paulatinam­ente as expectativ­as de cresciment­o futuro, como temos visto.

Empresário­s postergam seus planos de investimen­tos, e os consumidor­es, seu consumo, levando à materializ­ação de uma triste profecia autorreali­zável.

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