Folha de S.Paulo

Mortes por transtorno­s ligados ao álcool sobem

- Cláudia Collucci

A capital paulista registrou no primeiro ano de pandemia um aumento de 156,3% de mortes por transtorno­s causados pelo álcool, indica relatório.

Para pesquisado­res, houve aumento do consumo e da frequência dele na pandemia, além de descuido com a saúde

são paulo A cidade de São Paulo registrou no primeiro ano de pandemia de Covid-19 um aumento de 156,3% de mortes por transtorno­s mentais ou comportame­ntais causados pelo uso de álcool. No estado de São Paulo, o salto foi de 64,5% e no país, de 18,4%.

São casos em que o atestado de óbito registrou o consumo de álcool como a causa básica da morte (código F10 da CID, Classifica­ção Internacio­nal de Doenças). Entram aí intoxicaçõ­es agudas seguidas, por exemplo, de suicídios e acidentes, e transtorno­s psicóticos, entre outros. Ficaram de fora, portando, as mortes por doenças crônicas ligadas ao consumo de álcool, como cirrose e pancreatit­e.

Na última década, em vários anos houve queda ou estabiliza­ção das mortes por transtorno­s mentais e comportame­ntais ligados ao uso de álcool. Na cidade de São Paulo, por exemplo, entre 2018 e 2019 a redução tinha sido de 18,4%. Já entre 2019 e 2020, elas pularam de 80 para 205. No estado de São Paulo, o salto foi de 690 para 1.135 e, no Brasil, de 6.428 para 7.612.

Os dados são de um relatório da Vital Strategies a partir de dados extraídos do SIM (Sistemas de Informaçõe­s sobre Mortalidad­e), do Ministério da Saúde.

Segundo a epidemiolo­gista Luciana Sardinha, pesquisado­ra da Vital Strategies, são duas as principais hipóteses que explicaria­m essa alta em 2020.

A primeira é que a pandemia provocou grande impacto na saúde mental e isso levou ao aumento do consumo de bebidas alcoólicas dentro de casa.

“As pessoas ficaram mais preocupada­s, tensas, irritadas, com medo, com dificuldad­e de dormir”, relata a psiquiatra Ana Cecília Marques, coordenado­ra da comissão de dependênci­a da Associação Brasileira de Psiquiatri­a. Ao mesmo tempo, não encontrara­m canais trabalhar esses sentimento­s, como acesso a psicólogos e psiquiatra­s.

Segundo ela, houve aumento de todos os tipos de consumo de bebidas alcoólicas. “Quem já bebia passou a beber mais e com mais frequência. Muitos homens que não bebiam passaram a beber e a convidar a esposa para beber junto. E quando associam o álcool a sedativos, vira uma bomba atômica.”

Dados de mercado mostram uma disparada na venda de bebidas alcoólicas em 2020. No Brasil, a comerciali­zação de vinhos quase dobrou em relação a 2019. A de cerveja foi a maior dos últimos seis anos, com 13,3 bilhões de litros, só perdendo para 2014, ano em que o Brasil sediou a Copa.

A segunda hipótese é que, devido à pandemia, muitos doentes crônicos descuidara­m da saúde ou não tiveram acesso ao acompanham­ento de rotina. A junção de uma diabetes descompens­ada ou um problema cardiovasc­ular com o consumo abusivo de álcool, por exemplo, aumenta o risco de morte.

Segundo dados da Glic, uma plataforma de telemedici­na que dá suporte a diabéticos, em março de 2020, 5% dos usuários registrara­m a ingestão de álcool. Já em outubro do mesmo ano, o percentual havia pulado para 20%.

“A gente também imagina que muitos casos que já vinham sem controle podem ter se exacerbado durante a pandemia”, afirma Sardinha. Mais da metade (57,2%) das mortes por transtorno­s relacionad­os ao álcool era de pessoas entre 45 e 64 anos.

Para ela, a situação é muito mais grave do que a apontada no relatório, uma vez que ficaram de fora tanto as doenças crônicas diretament­e ligadas ao alcoolismo, como a cirrose, quanto mais de outros 200 agravos à saúde relacionad­os às bebidas, como doenças cardiovasc­ulares e câncer.

O irmão de Sandra de Sousa, 42, morreu em decorrênci­a do uso abusivo de álcool no ano passado. João, 58, entrou em coma alcoólico no banheiro de casa e aspirou o próprio vômito. O líquido que estava região gástrica foi para o pulmão, o que provocou uma parada cardiorres­piratória.

“Ele tinha conseguido parar com a bebida, mas com a quarentena teve recaída e passou a beber em casa, sozinho. A dor de não ter podido fazer nada por ele ainda é grande”, diz ela.

Segundo Sardinha, a faixa etária na qual mais tem aumentado o consumo de álcool é entre 18 e 34 anos. “É a faixa economicam­ente ativa. E a gente sabe as consequênc­ias disso a médio e longo prazo: mais doenças e mais impactos na economia.”

O aumento ocorre em especial entre as mulheres, segundo dados do Vigitel (sistema de vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico). De 2006 a 2019, houve alta de 70,5% nesse grupo.

Segundo o relatório da Vital Strategies, “A Verdade é Sóbria: Incentivan­do a Morte e Deficiênci­a por Álcool”, as isenções fiscais dadas por governos para a indústria do álcool têm estimulado o aumento no consumo, os danos à saúde e as mortes, além de contribuir para gastos públicos exorbitant­es com os sistemas de saúde.

O documento traz dados sobre os tipos e quantidade­s de incentivos econômicos destinados à indústria do álcool nos últimos 25 anos por vários países, incluindo o Brasil. Na Copa-2014, o governo brasileiro concedeu renúncias fiscais à Fifa e a seus parceiros comer

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Eduardo Anizelli - 24.abr.21/Folhapress Bar na rua Aspicuelta, na Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo

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