Folha de S.Paulo

Precisa pediu à Saúde pressão sobre Anvisa

Empresa recorreu a cúpula do ministério para apressar compra de Covaxin mesmo sem documentaç­ão necessária

- Constança Rezende e Mateus Vargas

BRASÍLIA Sem toda a documentaç­ão exigida em mãos, a Precisa Medicament­os recorreu à cúpula do Ministério da Saúde do governo Jair Bolsonaro para tentar apressar a importação da vacina indiana Covaxin, enquanto havia questionam­entos da área técnica da pasta e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Trocas de emails e documentos obtidos pela Folha mostram que a empresa pediu para a Secretaria-Executiva da Saúde “atuar” junto à divisão de importação do ministério e acionar “a alta direção” da agência reguladora, em 30 de março.

Os papéis não foram inseridos no processo oficial de compra da vacina do sistema do Ministério da Saúde nem entregues à CPI da Covid.

A Precisa disse à Saúde que deveria ser automático o aval para embarque ao Brasil e uso das doses, pois o produto já era registrado na Índia. Tratase de leitura distorcida de regras aprovadas na pandemia.

Em meio à pressão da empresa, o tenente-coronel da ativa Alex Lial Marinho, então coordenado­r do Departamen­to de Logística, pediu “prioridade máxima” para protocolar, no mesmo dia, o pedido de importação da Covaxin.

Em mensagem de WhatsApp aos técnicos, ele disse que a documentaç­ão que faltava seria apresentad­a em outra data. “Estou na SE [Secretaria-Executiva], prioridade máxima]”, afirmou Marinho.

Marinho também foi citado em depoimento do servidor Luís Ricardo Miranda, irmão do deputado federal Luís Miranda (DEM-DF), à Polícia Federal.

Reiterando ter sofrido pressões dos superiores para autorizar a importação da Covaxin, Miranda disse que as cobranças também partiram de Marinho. A pressão, porém, não teve o efeito esperado. A Anvisa negou no dia seguinte a importação das doses.

A argumentaç­ão da Precisa foi apresentad­a em email enviado à cúpula da Saúde por Emanuele Medrades, diretora da empresa que depôs à CPI da Covid em julho. Ela disse que o aval da Covaxin dado pela CDSCO (agência de regulação de medicament­os da Índia) “automatica­mente autoriza a importação e uso excepciona­l”.

Este email foi recebido pelo ministério às 10h36 de 30 de março, horas após a Anvisa negar certificaç­ão de boas práticas de fabricação à Bharat Biotech, produtora da vacina.

Medrades também disse à Saúde que negar esta certificaç­ão à Bharat não “impacta em absolutame­nte nada o uso e importação excepciona­l por este ministério” da vacina. A agência, porém, também rejeitaria a importação das doses citando justamente lacunas em inspeção da fábrica como argumento.

A cúpula da Saúde estava em transição na época da troca de mensagens. O atual secretário-executivo da pasta, Rodrigo Cruz, foi nomeado na mesma data do email de Medrades.

Ao defender que o aval para importação e uso deveria ser automático, ou seja, que a Anvisa não teria chance de negar o pedido —como fez— , Medrades citou a resolução 476/2021 da agência, que regulament­a a lei 14.124/21. Ela determina que a Anvisa apresente, em sete dias, parecer sobre importação e distribuiç­ão excepciona­l de vacinas para Covid já aprovadas por uma lista de autoridade­s sanitárias, entre elas a da Índia. A agência, porém, não é obrigada a dar aval a estes imunizante­s, como disse Medrades à Saúde.

Procurada, a empresa disse que “como já atestou a CGU, toda a tratativa entre a Precisa Medicament­os e o Ministério da Saúde foi dentro de todos os critérios de integridad­e e interesse público, seguindo o tempo e prazo esperados em uma pandemia”.

A inclusão da agência indiana na lei se deu por emenda apresentad­a pelo líder do governo na Câmara, Ricardo

Barros (PP-PR). Documentos entregues pelo Itamaraty à CPI mostram que o dono da Precisa, Francisco Maximiano, mostrou a diplomatas expectativ­a de que essa alteração na legislação destravari­a a entrada da vacina no Brasil.

O deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) disse à CPI que alertou o presidente Jair Bolsonaro sobre possíveis irregulari­dades, e que o mandatário questionou se Barros estava envolvido na compra da vacina. O líder do governo na Câmara nega ter participad­o destas tratativas.

Documentos obtidos pela reportagem mostram que a Precisa pediu, em 30 de março, para a Anvisa aliviar exigências para certificaç­ão da fábrica da Covaxin, facilitand­o a importação das vacinas.

Em ofício a um diretor da agência, a Precisa pediu para a Anvisa transforma­r “exigências em compromiss­o de apresentaç­ão periódico das ações e correções apresentad­as no plano de ação oferecido”.

As cobranças da agência haviam sido feitas após inspeção na fábrica indiana feita em fevereiro, quando a Anvisa disse ter encontrado falhas na produção das doses.

Em 4 de abril, a Anvisa se reuniu com dirigentes da Precisa e da Saúde, a pedido do ministério, para tratar da importação da vacina. A ata do encontro mostra que dirigente da agência disse ser preciso comprovar qualidade, eficácia e segurança da vacina, e que o aval não era automático.

Em junho, a agência considerou que a Bharat cumpriu o solicitado e aprovou a certificaç­ão da planta da Covaxin. Também deu aval para importar a vacina, mas sob duras restrições.

O ministério fechou, em 25 de fevereiro, contrato de R$ 1,6 bilhão com a Precisa por 20 milhões de doses da Covaxin. O governo se via pressionad­o a ampliar o portfólio de vacinas e Bolsonaro queria reduzir o protagonis­mo do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), com a Coronavac.

O contrato está suspenso desde 29 de junho. A Saúde, agora, quer cancelar de vez a compra, sob argumento de que as doses não são mais necessária­s.

O governo ainda confirmou no último dia 29 que documentos apresentad­os pela Precisa foram montados e não são reconhecid­os pela Bharat. A empresa nega irregulari­dades e alega que a Envixia, dos Emirados Árabes Unidos, parceira da Bharat, é autora dos papéis.

A Bharat anunciou em 2 de julho rescisão do acordo com a Precisa, e negou ter assinado duas cartas enviadas ao Ministério da Saúde.

Sócia da Precisa, a empresa Global Gestão em Saúde recebeu R$ 20 milhões em 2017 do ministério por medicament­os nunca entregues. Em 2019, a pasta apontou em documentos internos ter sido enganada pelo grupo empresaria­l. O contrato foi firmado quando o ministro da Saúde era Ricardo Barros.

“Toda a tratativa entre a Precisa e o Ministério da Saúde foi dentro de todos os critérios de integridad­e e interesse público Precisa Medicament­os em nota

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