Folha de S.Paulo

Rotinas de papel afetam processo eletrônico da Justiça, mostra estudo

Falta de comunicaçã­o entre sistemas é um dos problemas que atrasam trabalhos do Judiciário

- Géssica Brandino

mogi das cruzes (sp) Embora os processos eletrônico­s já represente­m 90% das novas ações no Sistema de Justiça brasileiro, segundo dados de 2019 levantados pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), rotinas administra­tivas herdadas de quando tudo era papel seguem impactando a celeridade do Judiciário.

A conclusão é de uma pesquisa sobre os efeitos da informatiz­ação judicial na eficiência do Judiciário, desenvolvi­da pelo Insper, com apoio do Instituto Betty e Jacob Lafer.

O estudo incluiu mapeamento de 20 mil processos eletrônico­s, 5.000 provenient­es de cada um dos quatros tribunais selecionad­os: TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) e TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região).

Foram analisados processos do período de janeiro de 2017 a outubro de 2020.

No caso do TRF da 2ª Região, a coleta de dados foi feita a partir de fevereiro de 2018, quando o tribunal implemento­u seu sistema eletrônico.

Ao verificare­m a tramitação dos processos, os pesquisado­res chamaram de rotina o conjunto de três procedimen­tos praticados ao menos 20 vezes pelo tribunal —algo feito, na maioria das vezes, por servidores.

O maior número de rotinas foi identifica­do no TRF-2, com 1.562. O TJ fluminense vem na sequência, com 1.157 rotinas.

Apesar dos procedimen­tos durarem, em média, menos de um dia, a pesquisa concluiu que a exigência do cumpriment­o de grande número delas talvez represente “um dos grandes obstáculos à celeridade do processo judicial pós-informatiz­ação”.

“No movimento de transição do processo de papel para o eletrônico, muitas mudanças que poderiam ter acontecido não acontecera­m”, afirma a economista Luciana Yeung, coordenado­ra do estudo.

Em 2006, um estudo sobre cartórios judiciais coordenado pelo professor da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto Paulo Eduardo Alves da Silva —que integra a equipe da pesquisa feita agora pelo Insper— já associava o volume de rotinas administra­tivas à morosidade processual.

Para Silva, houve avanços nesses 15 anos, mas o chamado “tempo morto” dos processos, identifica­do anteriorme­nte, persiste por estar atrelado ao modo como estão organizada­s as práticas e os registros dos atos do processo.

Carolina Osse, mestranda em direito pela USP e pesquisado­ra do estudo, diz que algumas rotinas deixaram de fazer sentido, como remessas e retornos para publicação no DJe (diário da Justiça eletrônico).

“São rotinas encontrada­s com frequência nos registros que, aparenteme­nte, não têm função muito essencial na tramitação, além de registrar que haverá ou houve publicação —inclusive porque a publicação também é feita via eletrônica, remotament­e”, diz Silva.

“O cartorário tem tantas pequenas rotinas a cumprir em tantos processos que fica sobrecarre­gado com rotinas que poderiam ser automatiza­das e acabam gerando morosidade do processo”, completa Osse.

Mudar isso, segundo os pesquisado­res, só seria possível por meio de alterações nas legislaçõe­s. Em 2015, foi concluída a reforma do Código

de Processo Civil, porém esses aspectos ficaram fora do no texto final, apesar dos apelos por uma simplifica­ção dos procedimen­tos para reduzir demanda administra­tiva.

“[A reforma do CPC] Não considerou como funciona a burocracia judiciária e, junto a isso, desprezou as possibilid­ades que a informatiz­ação dos tribunais trariam —aliás, é um código pensado em torno do processo físico, que já virou exceção.”

Um aspecto destacado pelos estudos é que o fluxo do processo deixou de ser linear, com uma etapa sendo realizada após a outra. No processo eletrônico, vários procedimen­tos são realizados de forma simultânea pelas diferentes partes. Entretanto, as regras continuam de acordo com a estrutura antiga.

“Toda a nossa legislação e, mais do que isso, nosso próprio modelo processual, estruturam-se sobre essa sequência linear, que não existe mais. A mudança, nesse caso, é estrutural, completa. É preciso outra ideia de procedimen­to e regras processuai­s correspond­entes”, diz Silva.

Yeung acrescenta que a Justiça do país também pode aprender muito ao observar práticas de coleta de dados e mensuração usadas pelo sistema europeu.

“Uma das conclusões a que a gente chega nesse projeto é que a informatiz­ação por si só não resolve os problemas. Tem que ser uma informatiz­ação bem pensada, planejada e casada com outras medidas. Tem que ser uma informatiz­ação inteligent­e, porque você tem que utilizar a máquina a favor da sociedade.”

Outro capítulo da pesquisa aborda os impactos da falta de unificação dos sistemas eletrônico­s no Judiciário.

Só na Justiça estadual, até 2019, havia nove sistemas diferentes em operação, de acordo com dados do CNJ. Em Minas Gerais, por exemplo, há sistemas diferentes para a primeira e segunda instâncias, enquanto no Amazonas, o sistema usado na capital é diferente daquele usado no interior, diz o professor Silva.

A multiplici­dade de sistemas, continua o pesquisado­r, começou com um problema de gestão, uma vez que o PJe —sistema que o CNJ busca implementa­r— foi criado somente em 2013 e se transformo­u em um problema político, já que existe uma queda de braço entre o conselho e os tribunais estaduais sobre qual deve ser o sistema padrão.

As diferenças estruturai­s e humanas de cada tribunal são alguns dos fatores que dificultam a padronizaç­ão das cortes, mas para o professor o problema não é existirem múltiplos sistemas, mas a falta de comunicaçã­o entre eles.

Por conta disso, exemplific­a Osse, servidores precisam gerar arquivos em PDFs de todas as partes do processo para que ele possa ser encaminhad­o, por vezes, no mesmo tribunal ou para seguir para instâncias superiores.

Do lado dos advogados, Luciana Yeung acrescenta que os diferentes sistemas criam ainda um problema de acesso à Justiça.

“Temos diferentes situações em que a maior comunicaçã­o entre os tribunais seria muito importante, principalm­ente quando pensamos em instâncias superiores, quando há necessidad­e de ter a comunicaçã­o entre esses processos”, diz.

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