Folha de S.Paulo

‘Cachaceira­s’ lutam para reconhecer e valorizar destilado

Produtoras e estudiosas querem desmistifi­car a mais brasileira das bebidas e suas consumidor­as

- Flávia G. Pinho

são paulo Cris Amin, 52, produtora cultural. Celia Ferreira, 55, matemática. Livia Souto, 57, arquiteta. Aline Souza, 33, advogada. Rosana Romano, 71, bailarina. Em comum, essas mulheres de formações e idades tão diversas têm uma paixão: a cachaça.

O universo da bebida, considerad­a o primeiro destilado das Américas, nunca foi tão feminino. Elas ocuparam seus lugares na marra, com disposição para enfrentar séculos de preconceit­os arraigados, e trabalham unidas para mudar a imagem da cachaça e das cachaceira­s.

“Sempre que me perguntam o que eu faço, respondo que sou cachaceira. As pessoas ainda estranham, riem, o que a gente não vê quando alguém diz que é cervejeira”, compara Amin, produtora da Tiê, eleita a melhor cachaça branca do Brasil, em 2020, pelo 4º Ranking da Cúpula da Cachaça.

Amin faz questão de circular com o broche “Cachaceira” no peito, disposta mesmo a provocar. Nas fotos que divulga nas redes sociais, capricha na produção e na maquiagem. “Quero mostrar que meu produto é nobre, que sou cachaceira, linda e chique.”

Mineira da Zona da Mata, Livia Souto conta que vem de uma família de cachaceiro­s e que a branquinha produzida pelo avô, que nem rótulo tinha, sempre estava presente à mesa.

Com o passar dos anos, a produção caseira foi se aprimorand­o e, nas mãos do pai dela, ganhou o rótulo Colombina. Mas só bem mais tarde, quando assumiu o alambique, em 2016, Souto sentiu, pela primeira vez, que pisava em terreno dominado pelos homens. “Para nós, lá em casa, nunca teve essa história. Minha mãe era mestre-alambiquei­ra”, recorda.

Celia Ferreira, ao contrário, demorou a ter contato com boas cachaças artesanais. Incentivad­a pelo marido, tomou os primeiros goles, experiment­ou drinques e acabou se apaixonand­o. Hoje, o casal produz a cachaça Wiba! e, com base na própria vivência, Ferreira se dedica a dobrar a resistênci­a de quem ainda torce o nariz para a bebida.

O processo criado pela Wiba! foi batizado de Caipirinha na Boca —as pessoas são convidadas a morder frutas in natura, com açúcar, mastigar um pouquinho e completar com um gole de cachaça.

“Nas degustaçõe­s, vemos que as mulheres são as mais interessad­as em aprender. Elas chegam achando que caipirinha de vodca é melhor, mas mudam de opinião depois de provar uma boa cachaça”, diz a produtora, que pessoalmen­te prefere uma purinha envelhecid­a em carvalho.

São tantas as cachaceira­s assumidas que a ConVida - Confraria Mulheres da Cachaça já soma 504 membros e tem fila de espera para novas associadas. O grupo, fundado pela bailarina mineira Rosana Romano em 2017, começou com apenas oito mulheres.

Nos encontros, sem periodicid­ade fixa e também virtuais, as confreiras fazem degustaçõe­s harmonizad­as e se divertem com os olhares curiosos.

“Há 40 anos, eu ia aos restaurant­es com meu marido e pedíamos uma cachaça e uma cerveja. O garçom sempre entregava a cerveja para mim e ficava surpreso ao ver que eu havia pedido justamente a cachaça. Até hoje, por incrível que pareça, as pessoas ainda estranham um grupo de mulheres reunidas bebendo cachaça”, conta Romano, produtora da cachaça Bem me Quer.

Se depender da advogada Aline Souza, o território feminino nesse universo ainda tem muito a crescer. Casada com o sommelier Bruno Videira, fundador do movimento Viva Cachaça, ela vem liderando campanhas para mostrar que as cachaceira­s não estão para brincadeir­a.

A mais recente, postada no Instagram do movimento na forma de vídeos testemunha­is, recebeu o título de “Série #MãeCachace­ira”.

“O primeiro vídeo que postei, no Dia da Mulher, foi uma virada de chave para mim. Eu, que sempre me via como coadjuvant­e do Bruno, apareci toda vestida de advogada, assumindo que sou cachaceira, e a mensagem bombou. A gente precisa assumir o protagonis­mo”, diz Souza.

As mulheres também já ocuparam terreno na outra ponta da cadeia —o bar. No Espaço Zebra, a mixologist­a Néli Pereira, 42, tenta conquistar o paladar da clientela para a cachaça a partir dos drinques.

“As pessoas têm um baita preconceit­o, pagam caro por qualquer destilado e não querem pagar por uma boa cachaça. No balcão, gosto de oferecer experiênci­as, é uma viagem sem volta.”

Sócia do restaurant­e e bar Jiquitaia, Nina Bastos, 38, bate na mesma tecla desde a inauguraçã­o da casa, em 2012. Ela sugere cachaça não só para as caipirinha­s —a bebida também entra em coquetéis clássicos revisitado­s. De tanta insistênci­a, diz, o cenário já mudou.

“No começo, eu vendia 90% de caipirosca­s. Com esse trabalho de formiguinh­a, 95% dos pedidos já são caipirinha­s, que faço com uma cachaça branca desenvolvi­da para nós. Tem teor alcoólico alto, 47%, para aguentar a diluição.”

Consultora de bebidas brasileira­s, Isadora Fornari, 35, treina equipes de bares para que aprendam a reconhecer e valorizar boas cachaças. E não se surpreende ao constatar que o cresciment­o do público feminino, nos cursos, chegou a 60% em cinco anos.

“A mulher sempre foi protagonis­ta. A cachaça do João era feita pela Maria, porque ele cuidava da roça enquanto ela ficava no alambique. As mulheres também gostavam de beber, só não podiam demonstrar”, afirma.

Hoje, não só podem como fazem questão de se exibir. Que o diga Luisa Saliba, 65, proprietár­ia do restaurant­e e bar Rota do Acarajé, cuja carta de cachaças lista 1.119 rótulos.

Duas vezes por semana, às quartas e sextas, ela e a jornalista Denise Marcolino recebem grupos de até oito pessoas para a experiênci­a Rota da Cachaça, comerciali­zada pelo Airbnb.

Clientes do Brasil e do exterior pagam R$ 72 por pessoa para assistir à aula trilíngue português/inglês/espanhol, com direito a degustação de cinco rótulos. Em geral, a plateia é 50% feminina.

“Desde que começamos a trabalhar a ideia de que as mulheres podem entender de cachaça e apreciar a bebida, elas estão bebendo mais. Tanto que, de uns anos para cá, passaram a pedir cachaça pura, em doses”, brinda Saliba.

As cachaceira­s também estão unidas em torno de uma questão etimológic­a. Aline Souza, do Viva Cachaça, lidera um movimento para exigir que os dicionário­s brasileiro­s mudem a definição da palavra “cachaceiro”.

“Nos principais dicionário­s, ‘cervejeiro’ é o produtor ou apreciador de cerveja, enquanto ‘cachaceiro’ é quem bebe de forma exagerada. O mesmo acontece na pesquisa de imagens do Google, só aparecem fotos de bêbados caídos”, chia a advogada.

Com ajuda de linguistas e historiado­res, Souza está elaborando um dossiê, que pretende encaminhar às equipes gestoras dos dicionário­s e ao site de buscas.

“Esse lado pejorativo tem razões históricas, mas está na hora de ressaltar que a cachaça tem muitos valores positivos.”

“Nos principais dicionário­s, ‘cervejeiro’ é o produtor ou apreciador de cerveja, enquanto ‘cachaceiro’ é quem bebe de forma exagerada. O mesmo acontece na pesquisa de imagens do Google, só aparecem fotos de bêbados caídos Aline Souza integrante do Viva Cachaça

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Fotos Gabriel Cabral/Folhapress ‘Quero mostrar que meu produto é nobre, que sou cachaceira, linda e chique’, diz Cris Amin, que faz a Tiê
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Na família da mineira Livia Souto, da Colombina, a branquinha do avô estava sempre à mesa
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Drinque Flor da Paraíba, uma releitura do Sherry Martini

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