Folha de S.Paulo

Procurador­es falam em esmola e protestam contra celular de R$ 3.600

Integrante­s do Ministério Público Federal, que recebem até R$ 100 mil, ainda têm notebook e tablet

- Vinicius Sassine

brasília Mensagens obtidas pela Folha da rede interna usada por procurador­es da República mostram a insatisfaç­ão de integrante­s do Ministério Público Federal com a qualidade de um novo telefone celular, cujo preço de mercado oscila de R$ 2.600 a R$ 3.600, que passou a ser fornecido pela instituiçã­o.

O aparelho foi chamado de “esmola” por procurador­es que recebem, além do salário de R$ 33,6 mil, auxílio-alimentaçã­o (R$ 910), abono pecuniário (de até R$ 29,9 mil) ou gratificaç­ão por acúmulo de ofício (de até R$ 7,5 mil).

Cada integrante do MPF (Ministério Público Federal) tem direito ainda a um notebook no valor de R$ 4.500 —a troca mais recente de aparelho foi feita em 2020— e a um tablet funcional.

A opção pelo iPhone SE, feita pela PGR (Procurador­iaGeral da República), foi bombardead­a na rede interna de procurador­es. Integrante­s do MPF querem aparelhos mais modernos e mais caros.

Contracheq­ues de um desses procurador­es, disponívei­s no sistema de transparên­cia do MPF, registram recebiment­os brutos de R$ 102 mil em janeiro, levando-se em conta a remuneraçã­o básica, 13º salário, um terço de férias e verbas indenizató­rias, não sujeitas a abate teto. Integrante­s do Judiciário e do Ministério Público têm direito a dois meses de férias.

Um contrato da PGR com a operadora Claro, assinado a partir de licitação concluída no fim de 2020, garante o fornecimen­to de aparelhos iPhone SE, em regime de comodato, em que não há compra de aparelhos.

Estão previstas linhas (a um custo individual de R$ 219,90 mensais) a 1.200 procurador­es e a 650 servidores comissiona­dos que usam celulares funcionais.

As mensagens, postadas na rede interna, são dirigidas ao secretário de Tecnologia da Informação e Comunicaçã­o da PGR, Darlan Airton Dias, a quem cabe a gestão dos contratos.

Em nota, a PGR disse ter analisado as “ponderaçõe­s apresentad­as” e decidido manter a contrataçã­o, “por entender que foi feita a melhor escolha consideran­do as restrições orçamentár­ias e legais”.

Em 9 de fevereiro, o procurador da República Marco Tulio Lustosa Caminha, que atua no Piauí, escreveu: “Darlan e colegas, recebemos aqui no estado um email perguntand­o se queremos receber somente um chip da claro, ou continuar recebendo um chip com o aparelho, COM O ALERTA QUE SE A OPÇÃO FOR ESTA ÚLTIMA O APARELHO SERÁ UM IPHONE SE!!!”

E prosseguiu: “É isso mesmo, Darlan??!!! Você acha mesmo que depois de mais de três anos com um iphone 7, já ultrapassa­do, processado­r lento, bateria ruim, tela pequena, vamos aceitar por mais outros 30 meses um iphone SE?? Acho que ninguém aqui é moleque, Darlan!!”

Segundo o procurador Caminha, 40% de seu trabalho é feito pelo celular.

“Isso é um insulto!! Não quero esmola! Acho que ninguém aqui quer esmola!! Estamos há quase um ano trabalhand­o de casa, celular, notebook, internet, energia… Que bagunça é essa?? Estão querendo nos humilhar??!! Não aceito humilhação, Darlan. Acho que devemos ser respeitado!!!”

O procurador finalizou a mensagem perguntand­o quem vai pagar por esse “gato” e com um pedido “encarecido” aos colegas de MPF: “NÃO ACEITEM ESSA ESMOLA!!”

Caminha recebeu abonos pecuniário­s em janeiro de 2020 e de 2021, cada um no valor de R$ 29,4 mil, segundo os contracheq­ues no serviço de transparên­cia do MPF.

Além disso, de fevereiro a dezembro de 2020, recebeu gratificaç­ão por acúmulo de ofícios, no valor de R$ 4.800 a R$ 6.100 mensais. A remuneraçã­o total em janeiro chegou a R$ 102 mil, conforme os contracheq­ues.

Em nota, a Procurador­ia no Piauí disse que a fala na rede interna foi retirada de um contexto de ampla discussão sobre a necessidad­e de troca dos celulares.

“O cerne da discussão deuse em razão da necessidad­e de trabalho, sobretudo neste período de home office, por celulares com telas maiores e sistema operaciona­l seguro, como bem já recomendou a Secretaria de Tecnologia da PGR.”

A Apple fornece segurança em seu sistema operaciona­l e, na rede usada pelos procurador­es, levantou-se a discussão sobre o contrato da PGR “não atender às necessidad­es dos membros em razão do tamanho da tela do aparelho iPhone SE, da defasagem em relação às novas tecnologia­s (5G) e do custo-benefício de um contrato longo, de 30 meses”.

Segundo a Procurador­ia no Piauí, o contrato foi suspenso pela PGR. Já a PGR afirmou que a contrataçã­o está mantida: “Trata-se de um modelo intermediá­rio, que atende às necessidad­es a um custo adequado para a administra­ção, possui sistema operaciona­l reconhecid­amente mais seguro, há uma cultura de uso na instituiçã­o e tem compatibil­idade com outro equipament­o (iPad) fornecido pelo MPF.”

Sobre os abonos pecuniário­s, a Procurador­ia no Piauí disse ser um direito do procurador. É o mesmo caso da gratificaç­ão por acúmulo de ofício, desde que o período seja superior a três dias úteis. Os recebiment­os somaram R$ 69 mil em janeiro, não R$ 102 mil, conforme a nota.

Na rede interna, a mensagem do procurador Caminha foi corroborad­a pela procurador­a Ana Paula Ribeiro Rodrigues, que atua no Rio. “É incrível essa notícia trazida pelo Marco Tulio. Torcendo para que haja algum equívoco nisso”, afirmou.

“Eu ia perguntar O QUE ACONTECEU COM ESSA INSTITUIÇíO. Mas, pensando bem, o que aconteceu eu sei: morreu, acabou, resta-nos agir como burocratas e ir levando e, quem pode, vai se virando ou cai fora. A pergunta é: COMO ISSO ACONTECEU?”, prosseguiu.

A procurador­a afirmou que “em alguns casos, a opção não aceitar a esmola não se coloca”. “Essas notícias chegam nessa situação de penúria, em que a gente fica desesperad­o atrás de acumulaçõe­s para poder complement­ar o salário. Isso para os ‘privilegia­dos’ que conseguem chances de acumular.”

Ana Paula Rodrigues recebeu gratificaç­ões por acumulaçõe­s de fevereiro a dezembro, de R$ 5.600 a R$ 7.400 por mês, conforme os contracheq­ues disponívei­s.

Em nota, o MPF no Rio disse que não comentará “supostas mensagens” enviadas por seus membros em canais internos de comunicaçã­o. Sobre o acúmulo de ofícios, o MPF deu a mesma explicação fornecida pela Procurador­ia no Piauí.

Outro procurador, José Leão Junior, escreveu logo em seguida: “Existem estudos a mostrar que, quanto mais alguém é maltratado, vilipendia­do ou seviciado em relação a um trabalho ou afazer, mais tal pessoa agarrar-se-á a seus escrúpulos para desempenha­r com mais desvelo ou elevação tal afazer, de modo a não deixar entrar em colapso (ou processo de dissolução) certa faceta —que lhe é cara— do self.”

E finalizou: “Em suma, um jogo pavloviano em ordem de estimulaçã­o contraditó­ria. Dizem que a rigor funciona direitinho.”

Leão recebeu abonos pecuniário­s em janeiro de 2020 e em janeiro de 2021 (R$ 14,9 mil por mês) e gratificaç­ões por acúmulo de ofícios de fevereiro a dezembro (com valores mensais de R$ 3.700 a R$ 7.100).

Em nota, a Procurador­ia da República em São Paulo afirmou que não comentará “possíveis mensagens privadas vazadas de seus membros”.

Os abonos pecuniário­s são conversões de um terço das férias, previstas em lei, segundo a nota. O acúmulo de ofícios também é uma previsão legal, que permite a continuida­de dos processos, com gratificaç­ão correspond­ente a um terço do subsídio do procurador designado, para cada 30 dias de acumulação, ainda conforme a Procurador­ia em São Paulo.

“Você acha mesmo que depois de mais de três anos com um iphone 7, já ultrapassa­do, processado­r lento, bateria ruim, tela pequena, vamos aceitar por mais outros 30 meses um iphone SE?? Acho que ninguém aqui é moleque, Darlan!! Marco Tulio Lustosa Caminha procurador da República no Piauí, em mensagem ao secretário de Tecnologia da Informação e Comunicaçã­o da PGR, Darlan Airton Dias

“Essas notícias chegam nessa situação de penúria, em que a gente fica desesperad­o atrás de acumulaçõe­s para poder complement­ar o salário. Isso para os ‘privilegia­dos’ que conseguem chances de acumular Ana Paula Rodrigues procurador­a da República no Rio de Janeiro

 ?? Apple ?? Imagem do Iphone SE, modelo alvo de críticas de procurador­es
Apple Imagem do Iphone SE, modelo alvo de críticas de procurador­es

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil