Folha de S.Paulo

Quem é imoral?

Todos os valores atrás dos quais o homem desfilou são encharcado­s de sangue

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello Brasil!’ (Três Estrelas), ‘Cartas a um Jovem Terapeuta’ (Planeta) e ‘Coisa de Menina?’, com Maria Homem (Papirus)

A coluna da semana passada surpreende­u alguns leitores.

Só para lembrar: afirmei que é imoral agir, escolher ou votar para respeitar valores estabeleci­dos, sejam eles quais forem.

Portanto, é imoral encorajar os eleitores a votar nos candidatos que enaltecem valores como pátria, Deus e família. Essa tríade pode servir de exemplo porque se trata dos valores mais triviais e porque essa foi a recomendaç­ão de

Jair Bolsonaro aos eleitores. Mas seria imoral da mesma forma qualquer recomendaç ão de votar segundo um valor estabeleci­do (que seja a solidaried­ade, a lealdade, o interesse próprio, o partido, o sonho do socialismo, a veneração satânica —tanto faz).

O que é imoral não é tal ou tal outro valor. Imoral é escolher e agir em observânci­a de um valor preexisten­te, seja ele qual for.

Na coluna da semana passada, usei a expressão “votar segundo consciênci­a” como o inverso de votar segundo valores. Ou seja, votar segundo consciênci­a seria um comportame­nto moral, enquanto o comportame­nto imoral seria escolher segundo valores (mesmo e sobretudo os valores nos quais você normalment­e acredita).

Entendo que essa oposição pareça paradoxal. Como seria imoral escolher segundo meus valores? E como seria indiferent­e a qualidade “moral” dos valores que defendo?

A resposta é simples. Sem exceção que me ocorra, todos os valores atrás dos quais a espécie humana desfilou ao longo de sua história são hoje, por isso mesmo, encharcado­s de sangue de vítimas mortas ou torturadas. A tríade recomendad­a pelo presidente é, de todas, a mais sinistra, e deixo ao leitor a tarefa de enumerar os horrores que cada um dos três “valores” continua autorizand­o.

Depois de 15 séculos em que cada um agitava a bandeirinh­a de seus “valores” (e, amparado por eles, cometia crimes e abusos), parece que nossa cultura, no século 18, deu-se conta de que os valores são muitos, diversos, e nenhum deles é “mais moral” do que os outros.

Alguns desavisado­s e preguiçoso­s, desde então, gritam contra o “relativism­o”, para o qual ninguém saberia mais decidir o que é bem e o que é mal. Suspeito que esses desavisado­s que se indignam com o suposto “relativism­o” moderno estejam sobretudo lamentando sua chance perdida de cometer atrocidade­s com a “boa” desculpa que eles estariam assim respeitand­o seus “valores”.

Por sorte, não há só os preguiçoso­s e os que procuram desculpas por suas piores tendências. Outros, já desde o século 18, perguntara­m-se como encontrar um critério de moralidade diante da variedade dos valores nas diferentes culturas e épocas.

O caminho foi longo, mas vou direto ao primeiro grande momento em que encontramo­s uma resposta adequada à dificuldad­e de conceber um critério moral digno da modernidad­e, ou seja, que não fosse apenas uma batalha ridícula de camisetas e bandeirinh­as.

Em 1932, Jean Piaget, o grande psicólogo suíço, publicou “O Juízo Moral na Criança”, em que se interessav­a não pelos valores supostamen­te morais que as crianças “aprenderia­m” (ou adotariam imitando os adultos), mas pelo funcioname­nto do pensamento moral nas crianças.

Ou seja, uma criança podia ser cristã, umbandista, satanista, patriota ou apátrida, só preocupada em imitar os pais ou decidida a fugir de casa assim que a porta ficasse destravada, pouco importava. Piaget descobria que: 1) uma criança elabora ideias morais originais a partir do convívio não tanto com os pais, mas com os seus pares, e, mais importante, 2) a maneira de uma criança pensar moralmente amadurece passando da heteronomi­a (deixar que outros nos ditem “valores morais”) à autonomia (decidir por conta própria o que éobemeoque­éomal).

Um aluno de Piaget, Lawrence Kohlberg, prolongou essa descoberta inicial de maneira magistral e, no fundo, foi o único que, até hoje, conseguiu resolver para nós a difícil questão do que é moral e o que não é.

Os ditos “valores” não são morais ou imorais. Mas é moral escolher e decidir de maneira autônoma. Enquanto é sempre imoral escolher e decidir seguindo valores estabeleci­dos.

É incômodo? Sem dúvida. Sobretudo para quem imagina que seja possível ensinar seus “valores” às crianças. Para quem desistiu dessa ilusão e entende que ensinar a moral significa ensinar a julgar de maneira autônoma, Kohlberg é ainda hoje a referência.

Suas obras maiores não são reeditadas. Só se encontram em sebos, a preço de livros de antiquário. Por que será?

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Luciano Salles

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