Folha de S.Paulo

Exposição a violência policial pode traumatiza­r crianças

Testemunha­s na infância podem desenvolve­r distúrbios do sono e alimentare­s

- Matheus Moreira

são paulo Uma criança de cinco anos vê seu pai, que a tem no colo, sob a mira de uma arma. Ela o presencia, ainda, cair no chão após levar uma chave de braço. Se antes sentia-se em casa na comunidade em que vive, hoje precisa ser acalmada pelo pai a cada vez que este cobre os 25 metros que separam a porta do lar do portão do terreno.

O caso do filho de Valdenir Alves dos Santos, 45, o mestre Nenê, ilustra as consequênc­ias que pode sofrer uma criança exposta à violência. Segundo especialis­tas ouvidos pela Folha, elas podem ter estresse pós-traumático e desenvolve­r depressão e ansiedade.

Naquele 19 de agosto, o mestre de capoeira estava com seu filho no colo, em frente à sua casa na favela do Mangue, zona oeste de São Paulo.

A Folha questionou a Polícia Militar, por meio da Secretaria da Segurança Pública, sobre quais os protocolos que orientam os agentes durante uma abordagem policial em que há crianças no local.

Se há algum protocolo, a pasta não o compartilh­ou com a reportagem. Em nota, o órgão afirma que “abordagens e ações são elaborados respeitand­o a legislação vigente, incluindo o Estatuto da Criança e Adolescent­e (ECA) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

Segundo a Polícia Militar, os agentes são orientados a “avaliar o cenário e a gravidade [da ocorrência] para o emprego da técnica adequada a cada situação”.

A Constituiç­ão Federal prevê, no art. 227, que o Estado, em conjunto com a família e com a sociedade, tem o dever de assegurar à criança, ao adolescent­e e ao jovem o direito à vida e à saúde (física e mental), de maneira a “colocá-los a salvo de toda forma de negligênci­a, discrimina­ção, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O ECA reafirma o que diz a Constituiç­ão, determinan­do que qualquer política pública seja pensada dando prioridade absoluta à criança e ao adolescent­e.

Com base nessas premissas, segundo Pedro Hartung, advogado e coordenado­r do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, entende-se que em todas as ações policiais em que há presença de crianças, deve-se pensar primeiro nelas, estejam elas direta ou indiretame­nte envolvidas na ação policial. Isso porque são mais vulnerávei­s e suscetívei­s, positiva e negativame­nte, à influência do ambiente.

Sobre o caso do mestre Nenê, Hartung aponta que, pelo descrito pela vítima, havendo uma criança em seu colo, é possível que a polícia tenha empregado uso desproporc­ional da força.

Negro, mestre Nenê afirma ter sido vítima de racismo ao ser abordado como suspeito de um crime que não cometeu. Ele foi agredido, jogado ao chão e sufocado com uma prática proibida pela própria PM, chegando a desmaiar. O filho assistiu a tudo. Mestre em psicologia clínica, Lucas Veiga explica que a experiênci­a de uma criança que presencia um conhecido, em especial o pai ou a mãe, sendo vítima de violência pode desenvolve­r um trauma. O mais comum, nestes casos, é o Tept (transtorno de estresse pós-traumático).

Os sintomas mais recorrente­s do Tept são distúrbios do sono (dificuldad­e para dormir ou pesadelos violentos recorrente­s), distúrbios alimentare­s (dificuldad­e em se alimentar ou compulsão), ansiedade, falta de concentraç­ão, choro intermiten­te e medo constante.

“A criança fica com medo de sair de casa; pode apresentar quadros de ansiedade quando se deparar com um carro da polícia, por exemplo, porque o veículo remete ao trauma”, diz.

A psicóloga Maria Célia Malaquias, coautora do livro “Psicodrama e Relações ÉtnicoRaci­ais” (ed. Ágora), diz que uma criança que presencia uma abordagem policial violenta contra seu pai ou mãe passa por uma experiênci­a tão forte e traumática que é como se essa criança experiment­asse a sensação de morte do pai e a sua própria.

“Ao viver algo de tamanha intensidad­e, a criança provavelme­nte não poderá compreende­r racionalme­nte o que aconteceu.”

Compreende­r e expressar o que aconteceu e quais os sentimento­s oriundos do trauma formam o principal caminho para lidar com possíveis transtorno­s causados pela situação.

Apesar disso, nem sempre é necessário o acompanham­ento psicológic­o imediato, segundo Veiga.

Antes de mais nada, os pais, a escola e as pessoas próximas à criança devem acolher sua angústia e incentivá-la a expressar seus sentimento­s por meio de conversas e desenhos, por exemplo.

“A ausência da possibilid­ade de elaboração do trauma pode fazer com que os sintomas de estresse pós-traumático perdurem por muitos anos”, diz o psicólogo, afirmando que a criança pode se tornar um adolescent­e ou mesmo um adulto deprimido ou ansioso.

“A criança traumatiza­da precisa saber que está tudo bem chorar e ter medo”, afirma.

O sinal de alerta para a busca por um especialis­ta é a persistênc­ia ou piora dos sintomas.

Até os seis anos, as crianças estão em plena fase de desenvolvi­mento, inclusive do cérebro. É nessa etapa que o ser humano está mais suscetível ao ambiente, segundo Malaquias, e por isso é tão importante evitar o trauma ou, caso ele ocorra, tratá-lo.

Um estudo realizado por pesquisado­res do Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli em 2004 já indicava um cenário preocupant­e de exposição de crianças à violência urbana.

Após entrevista­rem 500 crianças da rede pública de ensino, com idades entre 6 e 12 anos, os pesquisado­res observaram que 12,1% das crianças já haviam presenciad­o um assassinat­o ou morte.

O estudo constatou ainda que, das 500 crianças entrevista­das, 15,7% tinham sintomas compatívei­s com distúrbios como depressão e ansiedade.

Em 2019, pesquisado­res americanos da Universida­de do Sul da Califórnia estudaram o impacto da exposição de jovens com idade entre 11 e 19 anos a eventos traumático­s online, por meio de vídeos de pessoas de grupos étnicos minoritári­os sendo agredidas, presas ou rendidas.

A conclusão foi que a exposição a esse tipo de conteúdo na internet estava diretament­e relacionad­a a prevalênci­a de sintomas de estresse póstraumát­ico.

Os efeitos da violência sobre jovens são, além de psíquicos, físicos. Crianças que sofrem de Tept podem ter como sintomas atraso no cresciment­o e ganho de peso.

Uma criança que assiste a um ato violento contra seu pai pode se sentir desamparad­a e frustrada. Para Veiga, é possível que ocorra uma ruptura na imagem do pai como “herói”, promovendo na criança a sensação de impotência.

Malaquias aponta que, quando a criança vê seu pai sendo agredido e abordado de forma violenta, a sua estrutura de confiança se vê destruída.

“Se o pai, que é forte e grande, aos olhos da criança, sofre uma violência, quem a protegerá? O medo dela é enorme. Essa criança e esse pai precisam ser acolhidos”, afirma.

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Marlene Bergamo -28.ago.20/Folhapress Mestre Nenê, que foi agredido pela polícia diante do filho de 5 anos; menino precisa ser acalmado quando o pai vai abrir o portão de casa

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