Folha de S.Paulo

Cantora enquadra novinhos e chefões da moda como os súditos de seu reinado afro

- Pedro Diniz

Quando se é uma estrela pop, o artista tem uma escolha a fazer. Ou aceita o guardaroup­a da gravadora, ou procura um estilista que desenhe sua persona naquele momento. Com o álbum visual “Black Is King”, Beyoncé abre uma terceira via, não raro apoiada em contratos milionário­s de moda e música.

Se antes ela já havia pinçado com verniz de luxo símbolos africanos para refazer a história afro nos Estados Unidos —há desde as roupas de “branco” do período escravocra­ta aos signos do vodu—, agora ela pesa a tesoura histórica com o objetivo de se reapropria­r da estética do continente sem uma marca aparente. Nesse caso, ela é a sua própria marca.

Agora, é como se não quisesse reproduzir nada, nenhum grafismo, mas criar, a partir do que mais de uma dezena de estilistas fizeram só para ela, uma espécie de nova estética afrocêntri­ca.

Beyoncé e uma de suas stylists, Zerina Akers, montaram um guarda-roupa que imagina os tempos de hoje se os negros tivessem tido a oportunida­de de enraizar sua cultura nos grandes centros urbanos não fosse o extermínio que os vitimaram.

Ou seja, como hoje estariam diluídos os turbantes e a roupa de festa? Jerome Lamaar, nova-iorquino do

Bronx, responde com seu longo verde-água composto por body e lapela adornados com renda nigeriana. Como seriam aplicados os piedde-poule? Beyoncé mostra com um vestido decotado da marca senegalesa Tongoro.

Em que patamar estaria o look sexy baladeiro se Loza Maléombho, nascida no Brasil e radicada na Costa do Marfim, fosse premiada por sua jaqueta listrada em que os aviamentos são fechos de joias douradas?

Toda a estética de “preto é rei” parece extrapolar a ideia de afrofuturi­smo criado por outros estetas. Os looks não carregam traços de exotismo comuns ao olhar eurocêntri­co porque Beyoncé e Akers sabem que muito do que se entende por elegância nasceu da diversidad­e do continente africano.

No clipe de “Already”, por exemplo, os dançarinos trajam costumes de alfaiatari­a tingidos de lavanda e lima. Um desavisado poderia associar a imagem à Itália dos homens poderosos, mas o corte, a cor e a gramatura do tecido são há décadas a alma de alfaiates de Angola e da África do Sul.

Até o alardeado “streetwear”, que ela espertamen­te deixa explícito só nas peças de sua própria grife, a Ivy Park, tem origem nas periferias americanas, ainda que essa história tenha sido relegada à sombra.

Do ponto de vista da moda mainstream, a obra rebaixa grifes de luxo ao posto de coadjuvant­es. Elas estão lá porque o trabalho não tenta só dar espaço a novos nomes e exaltar a criação de negros — muitos ali, como Marine Serre e Molly Goddard, são brancos, e outros têm origem árabe—, mas enquadrar todo o sistema entre os súditos de Beyoncé.

Parte dos medalhões são parceiros de longa data. Há Riccardo Tisci, da Burberry, que criou cenário e roupa de malhado de vaca; Pierpaolo Piccioli, da Valentino, autor do look de oncinha cortado sob medida; Thierry Mugler, o mesmo da amazona negra da turnê “I Am…”, e Olivier Rousteing, da Balmain, que fez a Nefertiti encarnada por ela no Coachella.

Aqui cabe um parêntese. A escolha da vaca de Tisci está atrelada ao couro usado pelo Ocidente como parte da indústria fashion europeia, e a oncinha, à pele do animal mais estampado pelo ideal exótico de savana africana. Beyoncé funde os dois, apropriand­o o Ocidente e tomando de volta o imaginário selvagem, um estereótip­o criado por brancos.

Essas variantes tornam “Black Is King” pioneiro do novo afrofuturi­smo no século 21. A manobra visual é bem arriscada à luz da ebulição provocada pela morte de George Floyd e dos protestos recentes.

À beira de uma eleição americana marcada por pautas supremacis­tas e pelas dores provocadas pelo segregacio­nismo, Beyoncé não parece ter quisto só lançar uma catarse visual, mas também escrever em negrito de onde ela partiu e para onde deseja que caminhe nos próximos anos. Isso vai muito além de um reinado no Spotify.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil