Folha de S.Paulo

Mangá usa o absurdo para satirizar o dia a dia de uma cuidadora de velhinhos

- Érico Assis

A cuidadora Yukie nota algo estranho: objetos somem à volta de Kazue, idosa pela qual é responsáve­l. Feijões, sementes, o besouro de estimação da sua nora. Onde foram parar? Enquanto dá banho na idosa, acha sementes, botões e até besouros. Estão entre as pelancas de Kazue.

Chama-se a dedetizaçã­o. Acham canetas, chaves, moedas e até uma nova espécie de aranha entre as pelancas. E uma mão. Era o marido de Kazue, que estava desapareci­do.

A nora tem ideias. Leva a sogra para a farmácia e usa as pelancas para roubar produtos de beleza. A nora se dá conta que tem como lucrar ainda mais: usando a sogra para fazer contraband­o de drogas.

Quando a investida acaba em morte, as pelancas servem para esconder os corpos. E ainda nem chegamos a dez páginas deste conto de “Dementia 21”, de Shintaro Kago.

A premissa dos 17 contos da coleção é a mesma: a jovem cuidadora Yukie é encarregad­a de um novo idoso e, apesar de ser uma moça valente, o desafio é sempre maior ou mais absurdo do que o esperado.

Uma das cuidadas faz cada coisa do mundo desaparece­r conforme esquece que elas existem. Outra é uma senhora que, ao usar um creme mágico, provoca uma invasão de rugas na cidade.

Há ainda uma disputa entre cuidadoras na selva e a civilizaçã­o que surge numa casa de repouso feita de quartos autossufic­ientes, sem comunicaçã­o e empilhados até o infinito.

Cada conto segue a mesma progressão, como num sonho em que se aceita uma decorrênci­a absurda atrás da outra.

Kago é identifica­do na edição como expoente do “ero guro nansensu”, gênero que tem histórico quase centenário no Japão. O autor prefere identifica­r-se como “kisou mangaka”, ou quadrinist­a do bizarro.

Produzindo quadrinhos desde os anos 1980, ele aportou no Ocidente via internet, em traduções piratas como a da famosa “Abstractio­n” — conto erótico em que as próprias páginas da HQ começam a girar, cubisticam­ente, e confundir os personagen­s.

Hoje suas ilustraçõe­s e pequenas animações se difundem por Instagram e TikTok. Fora fetiches sexuais e aulas de anatomia bizarra, o autor é chegado numa escatologi­a.

Perto deste material que circula pela rede, “Dementia 21” é Kago comportado. Criadas originalme­nte para uma revista digital, as HQs têm desenho simplifica­do, como o de um manual ou cartilha. O contraste é positivo: na surrealida­de das tramas, o desenho técnico e econômico representa o banal e como o banal é invadido pelo surreal.

Há um outro nível de banalidade, que é o tema do envelhecim­ento da população no Japão. O país tem a segunda maior expectativ­a de vida do mundo, 85 anos, e um terço dos japoneses tem mais de 60 anos. A demanda por cuidados com idosos já até cruzou outro bom mangá publicado no Brasil, “Virgem Depois dos 30”, de Atsuhiko Nakamura e Bargain Sakurachi.

Frente a esta pauta, Kago responde com a comédia do absurdo. Não vá ter medo do rombo na Previdênci­a ou de sustentar seus pais. Os velhinhos são mais perigosos.

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Divulgação Ilustração de ‘Dementia 21’, de Shintaro Kago

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