Folha de S.Paulo

Ajuda que não chegou

Verba repassada pela CBF a clubes para pagar salários do futebol feminino foi usada em outras finalidade­s

- Renata Mendonça Jornalista, passou por ESPN e BBC. Escreve no Dibradoras, blog sobre mulheres no esporte

Já diria Paulinho da Viola: “dinheiro na mão é vendaval”. Infelizmen­te, essa é uma realidade comum ao futebol brasileiro. Não é de hoje que clubes sofrem com gestões irresponsá­veis, que acumulam dívidas e afundam instituiçõ­es. Mas se isso já é “comum” em equipes grandes, que arrecadam milhões por ano, imagina o que pode acontecer quando times menores recebem quantias consideráv­eis de mão beijada?

A intenção da CBF ao enviar dinheiro aos clubes menores para ajudá-los a se manter na crise foi ótima. Equipes das séries C e D do futebol masculino e das séries A1 e A2 do futebol feminino estavam com muitas dificuldad­es para se manter em meio a tantas perdas na pandemia, e o chamado “auxílio emergencia­l” era mais do que necessário.

O problema foi contar com a boa vontade e honestidad­e dos gestores dos clubes ao liberar esse dinheiro sem exigir uma comprovaçã­o de que ele seria gasto para manter os salários das atletas.

Na nota oficial divulgada no site da CBF, a entidade explica que o objetivo da ajuda é “colaborar para que esses clubes possam cumprir seus compromiss­os com os jogadores e jogadoras durante o período de paralisaçã­o do futebol”.

Mas no recibo que os gestores das equipes assinaram havia apenas o valor transferid­o “referente ao apoio financeiro emergencia­l e excepciona­l concedido em razão da pandemia Covid-19”. Alguns se valeram disso para usar o dinheiro para outros fins, negando às jogadoras salários de R$ 500.

São pelo menos 5 clubes dos 52 (somando séries A1 e A2 do Brasileiro feminino) que não repassaram nada do valor recebido para as atletas.

O Audax havia dispensado sua equipe feminina alegando “não ter recebido orientação da CBF” sobre como esse dinheiro deveria ser gasto. Os dirigentes do time voltaram atrás quando a denúncia veio à tona e após muita insistênci­a do coordenado­r de competiçõe­s de futebol feminino da CBF, Romeu Castro.

É ele quem tem ligado pessoalmen­te para as equipes para garantir que o dinheiro chegue às atletas. Sem um mecanismo de fiscalizaç­ão da CBF, faz-se necessário um trabalho individual­izado, clube a clube, na tentativa de convencer dirigentes do óbvio: honrar seus compromiss­os com as atletas usando o dinheiro que lhes foi dado com esse intuito.

Há casos em que os clubes terceiriza­ram o futebol feminino, mas, na hora de receber o dinheiro da CBF, quiseram, obviamente, “assumir” a modalidade.

Foi o que aconteceu no Auto Esporte, da Paraíba, e no Santos Dumont, do Sergipe. Ou seja, as jogadoras ficaram sem receber, e a verba foi parar nas mãos de quem nem sequer cuida do futebol feminino.

E há situações ainda mais alarmantes, como as de Sport e Vitória, dois clubes tradiciona­is do país, que cortaram investimen­tos nas equipes femininas recentemen­te e mantiveram times “por obrigação”.

Eles receberam a verba para o futebol feminino —R$ 50 mil para o Sport (série A2) e R$ 120 mil para o Vitória (A1)— e não repassaram um real para as atletas. Muitas ali não recebiam nada para jogar, ou apenas uma ajuda de custo com transporte e alimentaçã­o. Mas nem isso tem sido pago.

Não estamos falando de salários astronômic­os atrasados ou de direitos de imagens milionário­s não pagos. Estamos falando de jogadoras que nem sequer contrato assinado têm, reflexo da precarieda­de da profissão, e que muitas vezes são fonte de sustento de suas famílias. A elas, está sendo negado o básico, míseros R$ 500, um centésimo da ajuda mínima que os clubes receberam da CBF. A sem-vergonhice deveria ter limite.

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