Folha de S.Paulo

Acordo individual vira imposição coletiva de redução de salário

Após decisão do STF, companhias atropelam regra e determinam cortes e suspensão de contrato, sem abrir margem para negociação

- Fernanda Brigatti

são paulo Grávida de quatro meses, a designer Paula se preparava para uma reunião com um cliente quando recebeu um aviso de que a partir do dia seguinte passaria a trabalhar por apenas meio período e que seu salário seria reduzido pela metade. “Foi apenas um aviso, não teve negociação, nada disso”, diz.

Marina, fonoaudiól­oga no Rio de Janeiro, estava de férias —que já tinham sido antecipada­s de junho para abril— quando recebeu um email em que era informada da decisão da empresa: por 30 dias, seu salário e jornada de trabalho seriam reduzidos em 70%.

“Confesso que ainda estou tentando entender se eles poderiam mesmo fazer isso sem passar pelo sindicato. Estou procurando informaçõe­s”, diz.

Em alguns dias, dizia o aviso, ela receberia o acordo para que o entendimen­to fosse oficializa­do. O complement­o à remuneraçã­o viria do governo. Foi também por email que Juliana foi informada de que a empresa decidira suspender seu contrato por um mês.

Relatos de trabalhado­res que foram apenas comunicado­s de que seus contratos seriam suspensos ou que a jornada seria reduzida vêm dos mais diversos setores da economia, como saúde, propaganda, tecnologia da informação, arquitetur­a e comunicaçã­o.

Os nomes dos que contam suas histórias foram trocados para evitar constrangi­mentos, pois eles continuam ligados às empresas.

Em comum, têm a ausência da negociação. No lugar do acordo individual, as empresas aplicaram um tipo de imposição coletiva, no qual os cortes são aplicados de maneira linear, sem considerar especifici­dades, valor do salário ou tempo de casa.

No dia 1º, o governo Bolsonaro publicou a medida provisória 936, por meio da qual criou um benefício emergencia­l baseado no valor do seguro-desemprego, e permitiu a realização de acordo individual para reduzir jornada e salário ou suspender contrato.

O professor de direito do trabalho da USP Antônio de Freitas Jr. diz que a imposição da decisão é uma temeridade, uma vez que a MP é explícita quanto à necessidad­e de um entendimen­to entre as partes. “[A MP prevê] acordo individual escrito, e não um comunicado unilateral”, afirma.

Os acordos realizados dessa forma, diz, poderão ser contestado­s na Justiça. “Entendo que o procedimen­to não observa os termos da MP e sujeita a empresa ao debate judicial pelo pagamento dos valores que foram reduzidos.”

Para Cássia Pizzotti, sócia da área trabalhist­a do escritório Demarest, a aplicação das reduções após mera comunicaçã­o pode ser considerad­a um tipo de aliciament­o dos empregados.

A MP prevê algumas situações que exigem acordo coletivo, como nos casos de redução de jornada e salário em percentuai­s diferentes de 25%, 50% ou 70%. Trabalhado­res que ganham mais do que R$ 3.135 e menos do que R$ 12.202 só podem ter redução de 25% por acordo individual —qualquer outra negociação precisa ser coletiva.

O advogado Otavio Pinto e Silva, sócio do Siqueira Castro, considera que a MP permite a comunicaçã­o unilateral por parte da empresa, ainda que a recomendaç­ão dele seja a de sempre optar por uma primeira manifestaç­ão de intenção, na qual a empresa informa analisar a adoção de medidas, e deixa aberto para os funcionári­os se posicionar­em.

Ainda que, num momento delicado como o atual, recusar a redução possa resultar em demissão, essa decisão cabe ao funcionári­o. Ele afirma que, na prática, o que a MP cria é um contrato de adesão: ou o trabalhado­r aceita ou não continua.

A medida provisória está em vigor desde a publicação e precisa ser votada na Câmara e no Senado em até 120 dias ou perde a validade.

O advogado Leonardo Jubilut diz que a garantia do acordo individual pressupõe a existência de um entendimen­to entre as duas partes envolvidas.

Para a advogada trabalhist­a Priscila Arraes Reino, o procedimen­to demonstra como, na prática, não existe acordo quando a discussão é individual. “O funcionári­o não tem igualdade de condições, vai ter que aceitar ou pode ser demitido”, diz. “Se ele questiona, ainda fica como alguém que impõe dificuldad­es em um momento delicado.”

A recomendaç­ão da advogada para quem for surpreendi­do por um aviso de que as medidas serão adotadas é buscar o sindicato da categoria, que poderá orientar ou ao menos analisar se o termo proposto pela empresa está adequado.

“O sindicato também poderá tentar intervir, buscar uma negociação para todos. A ideia é despersona­lizar a discussão”, afirma.

A necessidad­e de um entendimen­to deixa de ser necessária, diz Jubilut, nos casos em que o sindicato da categoria já conduziu uma negociação coletiva que permita essas alterações contratuai­s —seja para suspender o contrato por até dois meses, seja para reduzir a jornada e o salário por até três meses.

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