Folha de S.Paulo

Deixar Bolsonaro falando sozinho

Diante das ofensas do presidente, leitores sugerem mudanças na cobertura

- Flavia Lima

Imagine-se humilhado pelo anfitrião, mas, por questões alheias a sua vontade, não poder deixar de visitá-lo. Como agir?

Muitos leitores contestam o que entendem ser uma paralisia da imprensa diante dos ataques feitos pelo presidente da República e seu entorno.

Acreditam que a imprensa deveria ir além dos duros editoriais escritos recentemen­te e perguntam se não seria possível mudar a maneira como a cobertura jornalísti­ca é feita.

Isso para evitar os xingamento­s vindos da mais alta autoridade da República e voltados a um grupo de profission­ais (mas não só a esse grupo) cujo trabalho é fiscalizar e fazer perguntas.

“Por favor, não mandem jornalista­s serem ofendidos no circo de Bolsonaro em Brasília”, pede um leitor.

É possível deixar o presidente da República falando sozinho?

A cobertura diária da Presidênci­a parte da ideia de que o seu titular tem temas de relevância para tratar, medidas para anunciar e, sobretudo, contas a prestar à população.

Na maior parte das vezes, porém, as falas do presidente passam longe disso.

Para completar, praticamen­te o único lugar em que se dá o que deveria ser a relação profission­al entre jornalista­s e o presidente parece pensado para que o trabalho jornalísti­co não consiga ser feito.

O cercadinho construído em frente ao Palácio da Alvorada (a residência oficial) reúne em um mesmo espaço a imprensa e os apoiadores de Jair Bolsonaro, que, muitas vezes estimulado­s pelo próprio presidente, hostilizam os repórteres.

Nesse ambiente, é difícil fazer perguntas e, em meio aos gritos e risadas da claque, a sensação é que os repórteres se mantêm apáticos às declaraçõe­s esdrúxulas e provocaçõe­s.

Por isso, entre os próprios jornalista­s, há quem sugira parar de cobrir o Alvorada.

Foi lá que, no episódio mais recente, Bolsonaro atacou a repórter da Folha Patrícia Campos Mello com insinuaçõe­s de cunho sexual.

Mas essa não foi a primeira vez que ele fez algo desse tipo.

Um vídeo de 2014, que, vira e mexe, volta a circular nas redes sociais, lembra os ataques sofridos por uma jornalista à época da Rede TV!, no qual é chamada de ignorante e estúpida.

De modo sintomátic­o, o alvo predileto do agora presidente são as mulheres e os homens que ele julga serem gays.

Tudo é historicam­ente inédito e é por isso que os veículos de comunicaçã­o parecem perdidos, sem saber como lidar com a situação.

Os próprios repórteres já cogitaram não fazer perguntas ou deixar o local em momentos de maior estresse ou quando a coisa descamba para a grosseria. Não sei quanto disso é factível.

Medidas como essas exigiriam coordenaçã­o, e o fato é que alguns veículos se sentem mais próximos do presidente.

Para o secretário de Redação Vinicius Mota, “a Folha tem a obrigação de cobrir o presidente da República, o posto político de maior responsabi­lidade do país, onde quer que ele se manifeste. Isso não anula a capacidade do jornal de reagir com proporcion­alidade a ofensas contra seus profission­ais, seja no plano jornalísti­co, seja no jurídico”.

Essa reação no plano jornalísti­co pode começar por entender que o comportame­nto agressivo do presidente é parte de uma tática, ao que parece, bastante eficaz.

Essa tática envolve um volume gigantesco de falas desencontr­adas, preconceit­os, ofensas, acusações e mentiras.

É como uma bomba de fumaça lançada sobretudo quando os holofotes ameaçam iluminar algo que ele gostaria que ficasse nas sombras.

O método é conhecido como “fire hosing” e consiste em desnortear o interlocut­or com um intenso fluxo de declaraçõe­s, semelhante à água que sai de uma mangueira de incêndio (“fire hose”, em inglês).

A reação passa também por ter clareza de que repercutir esses jorros custa tempo e recursos (humanos e materiais), que poderiam ser mais bem usados em investigaç­ões relevantes.

A saída não é deixar o presidente falando sozinho, mas gastar menos energia na repercussã­o e mais na contextual­ização dessas falas, como uma forma de interrompe­r o fluxo de desinforma­ção.

O respaldo dos veículos de comunicaçã­o a seus funcionári­os, assim como uma maior solidaried­ade entre eles, certamente contribuir­ia para que os repórteres se sentissem menos vulnerávei­s aos ataques.

Cada fala disparatad­a deveria ser disposta ao lado do assunto relevante que ela pretende encobrir, seja ele qual for: novas informaçõe­s sobre a investigaç­ão das circunstân­cias da morte do miliciano ligado à família Bolsonaro, as causas do nível persistent­emente alto do desemprego ou a reação anêmica da economia.

O fato é que a imprensa ainda não tem clareza sobre como reagir a isso. Aos 99, a Folha (e os outros veículos) tem pela frente um baita desafio.

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