Folha de S.Paulo

Resposta a Fernando Meirelles

Cineasta repete ladainha do fã-clube do papa ao dizer que ele salvou muita gente

- Sylvia Colombo Correspond­ente em Buenos Aires, foi editora da Ilustrada e participou do programa Knight-Wallace da Universida­de de Michigan

O cineasta Fernando Meirelles, diretor de “Dois Papas”, cometeu umerronopr­ogramaRoda­Viva doúltimodi­a3.Naverdade,dois.

Ao responder ao repórter especial da Folha Ivan Finotti, que o confrontou com comentário­s publicados neste jornal, um de Elio Gaspari, sobre Bento 16, e outro meu, sobre Francisco, o diretor afirmou que o desta colunista estava errado.

Porém, me confundiu com Gaspari. Mas esse é o menor dos problemas.

O que importa aqui é que Meirelles repetiu a ladainha equivocada que o fã-clube do papa propaga: a de que Jorge Bergoglio, na ditadura militar (19761983), salvou muita gente.

Só que, quando questionad­os sobre quem foi salvo, os apoiadores de Francisco não conseguem dar mais do que uma dúzia de nomes. E, mesmo assim, a maioria dos casos mencionado­s ocorreu antes da ditadura.

O conceito de “salvo” que

usam também é elástico. Ao analisar os casos, estão entre eles caronas dentro do país, telefonema­s para avisar fulano de que estava sendo seguido, dicas sobre como se comportar.

Há, sim, casos de perseguido­s que ele escondeu no Colégio Máximo de São Miguel. Mas se trata de um grupo pequeno —e antes dos anos de chumbo.

Num país como a Argentina, em que a investigaç­ão histórica é tendencios­a e escassa, é fácil encontrar quem opine com assertivid­ade, mas sem evidências.

Parece-me que Meirelles caiu nessa arapuca. O cineasta diz que conversou com ex-alunos e amigos de Bergoglio e com um “consultor jesuíta”.

Ou seja, ouviu apenas um lado da história, já que também admitiu que fez o filme convencido de antemão de que Bergoglio era “o cara”, alguém de quem é fã.

Há dois livros que tentam embasar a tese fantasiosa. “A Lista

de Bergoglio”, de Nello Scavo, que evoca uma comparação com a “A Lista de Schindler”.

Só que Oskar Schindler salvou 1.200 judeus, e no livro de Scavo aparecem apenas 11 pessoas ajudadas por Bergoglio.

Já “Salvados por Francisco”, de Aldo Duzdevich, traz as mesmas histórias e a defesa da ideia de que não se deve cobrar Bergoglio por não ter feito mais pelos perseguido­s sem entender que ele atuava “segundo um contexto”.

Não é um crime o fato de ele não ter ajudado mais gente. Mas é leviano afirmar que salvou muitos quando não é verdade.

Houve religiosos que se arriscaram muito mais que ele, como os bispos Miguel Hesayne e Enrique Angelelli, que denunciara­m desapareci­mentos e confrontar­am os militares. Angelelli foi morto pelo regime.

Bergoglio não fez quase nada nem mesmo para ajudar sua amiga Esther de Careaga.

Em depoimento à Justiça, em 2010, Bergoglio foi questionad­o sobre que tipo de atitude teve quando soube que Esther tinha sido sequestrad­a.

Respondeu que tinha entrado em contato só com “pessoas ligadas aos direitos humanos”, mas não com autoridade­s —a quem ele conhecia.

Na mesma ação em que Esther desaparece­u, foram sequestrad­as duas freiras francesas, e os representa­ntes deste país foram até a sede da Marinha reclamar por elas.

Torço para que o sucesso do filme, que concorre a três estatuetas na cerimônia do Oscar, que acontece neste domingo (9), suscite debates mais bem informados sobre o período e sobre o personagem.

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