Folha de S.Paulo

Choque de idiomas marca imigrantes brasileiro­s no Japão

No ano que marca três décadas do fluxo migratório, pais falam português e filhos, só japonês

- Bruno Benevides

Em 2020 completam-se 30 anos do fluxo migratório que levou 200 mil brasileiro­s ao Japão. A segunda geração, crescida lá, só fala japonês, língua que seus pais mal sabem.

“Os pais precisam ensinar o português em casa para manterem uma comunicaçã­o com o filho ou se esforçarem mais para aprender o japonês

Aiko Kanashiro presidente de ONG que atende brasileiro­s

tóquio e hamamatsu (japão) Aos 27 anos, Yone Satake é fluente em japonês, inglês e espanhol. Mas não conversa com os pais na língua nativa deles: apesar de também ser brasileira, ela não fala português.

“Desculpe, tenho certa dificuldad­e”, diz ela, com sotaque carregado, ao ser questionad­a pela reportagem da Folha se preferia conversar em português ou em inglês.

O caso de Yone retrata uma situação cada vez mais comum na comunidade brasileira no Japão: jovens filhos de migrantes que cresceram lá e não sabem falar fluentemen­te português. Em muitos casos, a comunicaçã­o é difícil porque os pais também não sabem falar japonês.

Esse conflito linguístic­o entre as gerações é um dos saldos de 30 anos de imigração brasileira para o país asiático, comemorado­s em 2020. O marco foi uma mudança da lei que entrou em vigor em 1º de junho de 1990 e facilitou a concessão de vistos de trabalho para estrangeir­os com ascendênci­a japonesa.

Desde 2017, o número de brasileiro­s morando no Japão voltou a aumentar após dez anos seguidos de queda — pelas estimativa­s do governo local, atualmente são cerca de 200 mil (os dados de 2019 ainda não estão fechados).

Segundo o antropólog­o Shigehiro Ikegami, vice-diretor da Universida­de de Artes e Ciências de Shizuoka, que estuda a comunidade brasileira no Japão, a primeira leva migratória depois da nova lei era formada basicament­e por jovens que trabalhava­m em linhas de montagem e queriam ganhar dinheiro para voltar ao Brasil. Eles não precisavam, portanto, aprender o idioma nem se preocupava­m com uma integração à sociedade.

Com o tempo, entretanto, muitos acabaram se estabelece­ndo no país e tiveram filhos. E saber japonês tornouse essencial para as crianças se ambientare­m socialment­e e conseguire­m acesso a universida­des e a oportunida­des de emprego mais qualificad­as.

“Assim, hoje vemos muitos filhos [de brasileiro­s] que não falam português, só japonês”, diz Ikegami. Segundo ele, o problema é ainda mais grave entre os adolescent­es, que precisam discutir com os pais a decisão sobre a carreira que escolheram e a faculdade, por exemplo. “Ou quando as meninas precisam de conselhos da mãe na hora de fazer sexo.”

Para Aiko Kanashiro, presidente da ONG Arace, que ajuda crianças estrangeir­as a se adaptarem ao país (70% das famílias atendidas são brasileira­s), o problema tem aumentado porque cada vez mais estrangeir­os têm entrado no ensino público japonês —que, evidenteme­nte, privilegia o ensino do idioma local.

“Os pais precisam ensinar português em casa para manterem uma comunicaçã­o com o filho ou se esforçarem mais para aprender japonês”, diz. Para ela, os jovens não se sentem estimulado­s a falar português no dia a dia e acabam esquecendo o idioma dos pais.

Segundo o antropólog­o Shigiro Ikegami, os mais novos percebem que o fato de não falarem japonês fluentemen­te tirou de seus pais a oportunida­de de conseguire­m trabalhos mais qualificad­os. E, para conquistar mais do que a geração anterior, eles priorizam a língua japonesa.

O problema, para ele, é que parte desses jovens acaba sem uma identidade definida — eles cortam a relação com o Brasil, mas não são completame­nte assimilado­s pelo Japão.

Para o antropólog­o, casos como o de Yone, que se adaptou por completo ao país, ainda são exceção. Ela nasceu no Japão, conseguiu se formar no ensino superior no país e atualmente trabalha na área administra­tiva da Somic, empresa de autopeças com sede em Hamamatsu, cidade 210 quilômetro­s a sudoeste de Tóquio.

Sua situação é diferente da de seus pais, que emigraram para o país para trabalhar em fábricas. A mãe sabe falar japonês e chegou a atuar como intérprete em escolas para ajudar na adaptação de crianças brasileira­s, mas o pai nunca aprendeu direito o idioma.

“Às vezes eu tinha que servir de tradutora entre eles [o marido e a filha]. Mas quando ele dava bronca, ela sempre entendia”, diz a mãe de Yone, Eliane Satake.

Ela conta que, quando criança, a filha falava os dois idiomas, mas que o português foi ficando para trás quando ela avançou na escola e aumentou o contato com as outras crianças japonesas.

“Ela até entende português, mas, se eu pudesse voltar atrás, talvez fizesse ela aprender melhor a falar [o idioma]. Mas na época pensei que era melhor ela saber japonês para se integrar e depois que o inglês ia ser mais útil”, diz a mãe, que mora na região de Hamamatsu.

Também moradora da cidade, a personal trainer Jaqueline Oshiro, 30, passou pelo mesmo dilema em casa: os pais falam pouco japonês, e o irmão dela não fala português. “Para o dia a dia, eles conseguem resolver, mas nas conversas mais complexas fica um pouco mais difícil”, diz.

Hamamatsu tem uma das maiores comunidade­s brasileira­s do Japão —são cerca de 10 mil pessoas, atraídas principalm­ente pelo fato de a cidade ser um dos polos da indústria automobilí­stica no país.

Os brasileiro­s que moram na região e conversara­m com a Folha confirmara­m que a situação é bastante comum, mas a maior parte pediu para não ter seu nome divulgado, em um sinal de que a questão do idioma segue sendo um das principais questões para a comunidade de imigrantes.

O professor de jiu-jítsu Carlos Toyota, 48, que mora no Japão há quase 30 anos, lembra que ao chegar ao país para trabalhar na indústria, passou por dois anos de depressão, em parte porque não sabia falar o idioma local.

A baiana Sirlei Nakano, no país há duas décadas e aluna da academia de Toyota em Hamamatsu —o local é um centro de encontro da comunidade brasileira— passou pelo mesmo problema.

“Quando eu cheguei, meu chefe falava, falava, eu balançava a cabeça, mas não entendia nada, é meio desesperad­or”, afirma ela, que aprendeu apenas a versão mais simplifica­da da língua japonesa.

Por isso, conta, fez questão de que seu filho, de 22 anos, crescesse sabendo falar português. “Se não, ele nunca ia conseguir conversar comigo.”

Em várias fábricas da região, há instruções em português, que se repetem nas placas da prefeitura e em parte do comércio como forma de ajudar os brasileiro­s —o que acaba estimuland­o alguns imigrantes a não estudarem o idioma local, segundo Kanashiro.

Para o prefeito de Hamamatsu, Yasutomo Suzuki, o grande contingent­e de imigrantes brasileiro­s gera alguns desafios para o serviço público, mas o saldo é benéfico para a economia da cidade.

Segundo ele, até meados da década de 2000 muitas crianças brasileira­s, por exemplo, ficavam fora da escola. O Estado não é obrigado a oferecer ensino público para estrangeir­os, e muitos pais brasileiro­s não têm dinheiro para bancar uma escola privada —além disso, os imigrantes não são obrigados a matricular seus filhos.

O problema, diz Suzuki, foi resolvido na última década por meio de parcerias entre a secretaria municipal de educação e ONGs que passaram a ajudar a monitorar as famílias que passavam por problemas. Hoje o município oferece vagas a todos os estrangeir­os.

As escolas municipais contam com tradutores de português e há aulas de reforços para os brasileiro­s recém-chegados ao país e que ainda não dominam o idioma local.

Kanashiro, da ONG Arace, reconhece a melhora nos últimos anos, mas afirma que a língua continua sendo um desafio. Na hora da lição de casa, por exemplo, muitos pais brasileiro­s não conseguem ajudar os filhos, o que deixa as crianças em desvantage­m.

Apesar disso, diz o antropólog­o Ikegami, o número de brasileiro­s que conseguem chegar ao ensino superior japonês tem aumentado. “Só acho uma pena que, para isso, eles acabem perdendo a ligação com o Brasil.”

O jornalista viajou a convite do Ministério de Relações Exteriores do Japão

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