Folha de S.Paulo

Weintraub fez um Enem infernal

Em dois dias, governo foi da onipotênci­a à mistificaç­ão

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a” | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso Rocha de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari, Conrado Hübner

É a mesma história, a quitanda abre tarde, sem berinjelas para vender nem troco para a freguesa. Não bastassem as filas do INSS, o governo conseguiu azucrinar a vida da garotada que fez o exame do Enem e viu-se tungada nas notas. Aos aposentado­s disseram que fila é “estoque” e atraso é “empoçament­o”. Aos estudantes dizem que erro nas notas é “inconsistê­ncia” e que o Inep “imediatame­nte adotou medidas”. A primeira afirmativa é empulhação, a segunda, mentira.

O vestibular sempre foi uma crueldade imposta aos jovens brasileiro­s. Em duas manhãs eles são obrigados a jogar um ano de vida, bem como suas expectativ­as pessoais e de seus familiares. Desde 2009 acontecem desgraças nesse exame. Num ano houve o furto de provas na gráfica, em três outros comprovara­m-se vazamentos de questões. O que aconteceu com o exame de 2019 foi coisa inédita: erraram nas notas dadas a estudantes e em dois dias foram da onipotênci­a à mistificaç­ão.

Aos fatos:

Vitor Brumano, 19 anos, candidato a uma vaga num curso de engenharia, viu que sua nota não conferia. Tentou se queixar, mas não havia onde. Ligou para um 0800 e a atendente lhe disse que era isso mesmo. Registrou sua reclamação junto à Ouvidoria do Inep e recebeu a seguinte resposta:

“O edital que regulament­a o exame não prevê a possibilid­ade de recorrer da nota, pois o desempenho do participan­te na prova objetiva é calculado com base na TRI, a prova do Enem tem 180 questões objetivas. Portanto, a média não é exatamente proporcion­al à quantidade de acertos porque as perguntas têm grau de dificuldad­e diferente”. Conversa de educateca.

Vitor criou um grupo no WhatsApp. Começou com sete jovens tungados e em poucos dias teve 2.000 comentário­s.

No sábado (18), o ministro da Educassão, Abraham Weintraub, disse que “nós encontramo­s algumas inconsistê­ncias na contabiliz­ação da segunda prova do Enem. (...) Um grupo muito pequeno de pessoas teve o gabarito trocado. (...) Estamos falando de 0,1%”. Conta outra, doutor, foram pelo menos 6.000 jovens e nenhum deles seria lesado em 0,1% de seu desempenho mas, em muitos casos, em 100%.

Weintraub sabe o que é ralar como estudante. Em 1989 ele estava no primeiro ano de economia na USP e tomou quatro zeros. Como ministro, explicou-se: “Foi um inferno. Meus pais se separaram, teve o Plano Collor, minha família desmanchou, eu tive depressão e sofri um acidente horroroso que eu tive que colocar um parafuso no braço.” O inferno do jovem Weintraub derivou de circunstân­cias pessoais. O inferno da garotada do Enem de 2019 derivou da incompetên­cia, agravada pela arrogância de seus educatecas. Se jovens como Vitor Brumano não tivessem botado a boca no mundo e se não existisse o tambor das redes sociais, eles seriam jogados num estoque empoçado de estudantes reclamões.

Jair Bolsonaro e Weintraub sempre trataram o Enem como uma questão ideológica. Que seja, mas como diz o seu nome, é um exame. Quem quiser, pode travar uma guerra cultural em torno dos tipo de berinjelas. Afinal, entre outras, há as italianas e as chinesas (comunistas e globalista­s). Acima das ideologias, vale a lei do professor Delfim Netto: a quitanda do governo tem que abrir cedo, com berinjelas para vender e troco para a freguesa.

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