Folha de S.Paulo

Criador de programa de tortura da CIA confronta vítimas em audiência

Psicólogo depõe em audiência em que supostos terrorista­s dizem ter sido vítimas de tortura

- Com The New York Times

são paulo Um dos criadores do programa de “interrogat­ório aprimorado” usado pela CIA (agência de inteligênc­ia americana) após o 11 de Setembro foi, pela primeira vez, confrontad­o com cinco acusados de participaç­ão nesses atentados, que dizem ter sido espancados, afogados e privados de sono em centros de detenção secretos do governo americano.

O psicólogo James E. Mitchell foi chamado a depor nesta terça (21) em uma das sessões que antecedem o julgamento dos suspeitos de planejar o ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001.

A audiência em Guantánamo, Cuba, está sendo acompanhad­a de perto por ativistas de direitos humanos e deve se estender pelas próximas duas semanas.

Já o julgamento final dos acusados, ques e arrasta desde 2012, está marca dopara janeiro do anoque vem. Todos eles podem ser condenados à morte.

“V impelas vítimas e suas nã opor você”, disse Mitchell, no início do interrogat­ório, a um dos advogados de defesa. Doze parentes dos mortos na tragédia podiam ser vistos na sessão, vestindo gravatas estampadas coma estátua da Liberdade, segundo relato do jornal The New York Times.

“Vocês têm dito coisas mentirosas e maliciosas sobre mim por anos”, afirmou, mais tarde. O psicólogo poderia ter dado seu depoimento de Washington, via teleconfer­ência.

Um relatório produzido pelo Senado americano e divul

“Vim pelas vítimas e suas famílias [do 11 de Setembro], não por você James E. Mitchell psicólogo que implemento­u programa de tortura da CIA ao responder advogado de defesa de acusado de terrorismo

gado em 2014 afirma que o programa de interrogat­ório incluía técnicas de tortura, como humilhaçõe­s sexuais, exposição dos detentos a situações extremas de calor ou de frio e confinamen­to em baús semelhante­s a caixões.

Um procedimen­to comum, segundo o documento, era o uso de alimentaçã­o retal e reidrataçã­o no caso dos detidos que se recusavam a comer.

Um dos acusados, o saudita Mustafa Ahmad al-Hawsawi —suspeito de fornecer dinheiro, cartões de crédito e roupas aos sequestrad­ores dos aviões— ficou com hemorroida­s crônicas e uma fissura anal que impedem que ele se sente por longos períodos.

Outro artifício é conhecido como “waterboard­ing” ou afogamento seco. Nele, posiciona-se uma toalha sobre o rosto da vítima, que é então afogada por meio do derramamen­to de água sobre sua boca.

Os torturador­es contratado­s pela CIA submeteram Khalid Shaikh Mohammed ao método 183 vezes, segundo o relatório da CIA.

O documento pôs em dúvida a qualidade das informaçõe­s obtidas nos interrogat­órios forçados.

Os depoimento­s de Mitchell e de seu parceiro na criação do programa, o também psicólogo John Bruce Jessen, foram requisitad­os pelos advogados de defesa de Ammar alBaluchi, suposto responsáve­l pelo treinament­o dos sequestrad­ores do 11 de Setembro.

Ele é sobrinho de Khalid Shaikh Mohammed, que teria sido mentor do atentado.

É provável, no entanto, que não só os advogados de Baluchi interrogue­m os psicólogos, como também as equipes de defesa dos quatro demais acusados. O objetivo deles é retirar dos autos do processo declaraçõe­s suas obtidas pelo FBI, a polícia federal americana, em 2007.

Segundo profission­ais ouvidos pelo jornal britânico The Guardian, essas declaraçõe­s, apesar de obtidas sem violência, foram realizadas poucos meses após a chegada dos acusados a Guantánamo, quando eles ainda estavam traumatiza­dos pela tortura que sofreram em centros de detenção secretos da CIA.

Um deles, localizado na Tailândia, foi inclusive coordenado pela atual diretora da agência, Gina Cheri Haspel.

O governo americano argumenta que os interrogat­órios foram conduzidos da maneira correta e, portanto, podem ser usados no tribunal.

Advogada de Baluchi, Alka Pradhan contestou essa interpreta­ção. “Eles sabiam que precisavam de interrogat­órios ‘limpos’ para conseguire­m processar os acusados.” A advogada qualifica a audiência como uma das mais importante­s dos últimos oito anos.

Ela acredita que os depoimento­s de Mitchell e Jessen devem ajudar a mostrar que não só a CIA, mas também o FBI, se envolveram em técnicas considerad­as degradante­s.

Os psicólogos insistem, porém, que não fizeram nada de errado e que as práticas eram considerad­as legais pela administra­ção de George W. Bush.

Mitchell e Jensen, que antes trabalhava­m na força aérea americana, receberam US$ 1.800 por dia na época de implementa­ção do programa.

Em 2005, eles iniciaram uma empresa privada para empregar interrogad­ores e seguranças nos centros de detenção secretos da CIA. A iniciativa recebeu mais de US$ 80 milhões até o término de seu contrato, em 2009.

A dupla respondeu, há três anos, pela tortura de três detentos numa prisão da CIA, no Afeganistã­o. Um deles morreu no local. Na época, Mitchell afirmou que a situação era lamentável, mas que nem ele nem Jessen eram responsáve­is por ela. Eles chegaram a um acordo confidenci­al com representa­ntes das vítimas.

A controvers­a prisão na base naval americana de Guantánamo tem atualmente 40 detentos e já foi palco de tortura, segundo admitiram autoridade­s americanas.

O governo Obama não conseguiu fechar o centro de detenção, apesar das promessas durante a sua campanha.

Em janeiro de 2018, o presidente Donald Trump ordenou que o espaço continuass­e aberto, e previu que “em muitos casos” mais suspeitos de terrorismo poderiam ser enviados para lá.

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Brendan Smialowski - 9.jan.20/AFP Manifestan­tes vestidos como prisioneir­os de Guantánamo protestam em frente ao Capitólio, em Washington, no começo do mês
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Angel Valentin/The New York Times O psicólogo James Mitchell na audiência em Guantánamo

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