Folha de S.Paulo

Distorções tributária­s

Por que cobramos tributo sobre tributo? O fisco mandou a racionalid­ade às favas

- Marcos Mendes Pesquisado­r associado do Insper, é autor de “Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?”

O STF está prestes a concluir, no próximo dia 5, julgamento que exemplific­a como as distorções do sistema tributário criam inseguranç­a jurídica, prejudicam o equilíbrio das contas públicas e geram má alocação de recursos e talentos, destruindo valor, derrubando a produtivid­ade e o cresciment­o econômico.

Recentemen­te, o STF decidiu que o valor pago de ICMS não deve fazer parte da base de cálculo de outro tributo, a Cofins. Isso significa que uma determinad­a alíquota incidirá sobre base de cálculo menor, reduzindo o montante pago ao erário.

Por que cobramos tributo sobre tributo? A escalada da despesa pública, desde os anos 1980, gerou a necessidad­e de custear gastos sempre crescentes. O fisco mandou às favas a racionalid­ade do sistema tributário, e o objetivo passou a ser apenas arrecadar mais. Entre outros aumentos de tributos, houve a criação da Cofins incidindo sobre base ampla, inclusive sobre outros tributos, visando financiar crescentes gastos da seguridade social.

As regras tributária­s, sempre buscando um real a mais, tornam-se complexas. Isso cria oportunida­des de ganhos em ações contra o fisco. Advogados talentosos, que poderiam trabalhar em contratos de investimen­to em infraestru­tura ou de comércio internacio­nal, encontram business mais lucrativo no ofício de processar o erário.

Passam a trabalhar para grupos de interesse que, buscando brechas na tributação, contribuem para tornar o processo mais complexo.

Por mais questionáv­el que possa ser a inclusão de um tributo na base de cálculo de outro, o fato é que, antes da decisão do STF, havia uma regra estável e os preços eram formados a partir dela. O STF, aliás, já havia rejeitado várias teses propondo a não incidência de tributo sobre tributo.

Nesse ambiente de regra conhecida e referendad­a pelo STF, as empresas formavam seus preços. As que eram capazes de repassar os custos aos consumidor­es finais fixavam preços mais altos. Outras absorviam parcial ou totalmente o custo em suas margens de lucro.

Se a decisão do STF for no sentido de que tributos pagos no passado devem ser restituído­s às empresas que fizeram o recolhimen­to, haverá ganho injustific­ado para as que, no momento da venda, repassaram o tributo aos consumidor­es.

O sucesso dos garimpeiro­s de brechas tributária­s estimula a entrada de novos “mineradore­s” no mercado da litigância: da decisão inicial já surgiram 24 novas “teses filhote”, questionan­do tributos sobre tributos.

A busca por compensaçã­o da receita perdida reforçará a criativida­de do fisco para extrair, de forma torta, mais recursos do contribuin­te.

Essa luta resulta em inseguranç­a jurídica e em ampliação do contencios­o tributário e dos custos para calcular e pagar tributos. Haverá agravament­o do desequilíb­rio fiscal, pois a conta das restituiçõ­es atinge centenas de bilhões de reais. Aumenta o risco de criação de novos tributos. Que empresa vai investir e gerar empregos em tal ambiente?

A proposta de reforma tributária, visando instituir um Imposto sobre Valor Agregado, é a solução racional, pois estabelece base tributária clara e elimina a cumulativi­dade. Inclusive aquela decorrente da incidência de imposto sobre imposto. Mas a resistênci­a dos que ganham com o sistema atual já indica lento avanço da reforma. Mesmo com essa dificuldad­e, não cabe ao STF tentar consertar o sistema pela via judicial.

O Supremo deveria reconhecer que sua decisão foi uma brusca mudança na jurisprudê­ncia e modular sua decisão, fazendo-a valer de agora em diante, afetando apenas a formação dos preços que ainda serão praticados. Com isso, amenizaria o estrago.

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