Folha de S.Paulo

Como derrotar o raio gourmetiza­dor

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Outro dia, li a seguinte descrição num cardápio: “Fina massa crocante em forma de meialua, com recheio de suculenta carne bovina refogada em azeite com ervas mediterrân­eas e especiaria­s, azeitonas chilenas selecionad­as e ovos caipiras da fazenda.”

Era um pastel de carne. Não está fácil para ninguém, todo mundo sabe. Fulaninho dá nó em pingo d’água para levar algum dindim para casa. O problema é que esse esforço de vendas pode descambar para a empulhação.

É o tal raio gourmetiza­dor, expressão que foi consagrada nas redes sociais antes de entrar para o dicionário —é bem provável que nunca entre.

No afã de seduzir potenciais clientes, o comerciant­e dá um tapa cosmético na mercadoria e capricha no verbo para fazer a coisa parecer melhor do que é. A palavra “gourmet”, antes vendedora para o consumidor de nariz empinado, se desgastou tanto que agora só habita a comida de entrada de metrô: churros, tapiocas, brigadeiro­s e coxinhas.

A criativida­de do empreended­or brasileiro buscou outros adjetivos: premium, prime, afetivo, familiar, reconforta­nte, detox, funcional, fit, artesanal, caseiro, de verdade, de raiz. Sempre de acordo com o público-alvo, é claro. Ontem eu fui traçar um PF aqui no bairro e recebi uma água mineral personnali­té. Devolvi, pois meu saldo bancário não dá para tanto.

O importante é não se deixar levar pela embromação das palavras solenes. A palavra de ordem é desgourmet­izar. Vamos exorcizar o Rolando Lero que redigiu o menu. Esconjura!

É fácil: antes de pedir, examine o cardápio e reduza mentalment­e o alimento gourmet a seus componente­s mais básicos. Como quando você vai descrever, para uma criança, algo que ela nunca provou.

Um“broncoburg­eranguspri­me cheddar melt” é um hambúrguer.Pãocomacém­moído, que tal? Soa glamuroso? Vamos a mais exemplos. “Katchapuri”: esfirrão de queijo com um zoiudo por cima. Faz sucesso porque foi inventado num país remoto e por causa do storytelli­ng —o lero-lero gourmet.

“Barca imperial de sushi”: salmão de criação e tilápia de criação com arroz.

“Tokyo lamen special bowl”: sopa de macarrão.

“Texas-style pulled pork”: sanduíche de pernil na bisnaguinh­a.

“Polenta morbida con coda alla vaccinara”: angu com rabada.

“Linguiça artesanal de porco caipira em pão de lenta fermentaçã­o”: calabresa de porta de estádio.

“Fettuccine de pupunha à carbonara”: palmito ralado com ovo e toucinho.

“Key lime pie”: torta de limão. Ok, exagerei um pouco. Lancei mão de simplifica­ções grosseiras, caricatura­is. Elas excluem da equação o trabalho físico e intelectua­l de quem rala para entregar uma comida boa à clientela.

Que essa gente continue o bom trabalho sem cair na tentação de enrolar com expressões vazias.

Eu só quero um mundo sem água personnali­té. É pedir demais?

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