Folha de S.Paulo

De onde vem esse ódio todo?

Algo une o assassino de Realengo, os dois de Suzano e o atirador de Christchur­ch

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

Não podemos mais acreditar que ataques terrorista­s e franco-atiradores não fazem parte da sociedade e cultura brasileira­s. Infelizmen­te, agora fazem. E não é só aqui. Mesmo um país pacífico como a Nova Zelândia é palco de um massacre hediondo.

Na imaginação pública, quando se fala de terrorismo pensamos logo em muçulmanos. Mas a realidade é bem diferente. Segundo relatório da Anti-Defamation League americana, nos EUA, 73% dos atentados terrorista­s dos últimos anos foram cometidos por extremista­s de direita, e apenas 23% por islamistas radicais. Suzano e Christchur­ch se encaixam nessa imagem geral.

Existe um importante debate acerca de armas de fogo que teremos de enfrentar. No massacre em Suzano, os dois jovens tinham apenas uma arma de fogo. Sabe-se lá quantas vítimas teriam sido se o acesso às armas fosse ainda mais fácil do que é hoje e eles tivessem um arsenal em mãos. Só que as armas jamais serão completame­nte erradicada­s: a dos atiradores era ilegal; ou seja, mesmo quando proibidas, ainda são alcançávei­s. Precisamos entender também por que um número crescente de jovens do sexo masculino trilha esse rumo destrutivo.

O lugar do homem na sociedade está em xeque. O que antes era considerad­o atributo masculino (agressivid­ade, autoafirma­ção, desejo sexual) é hoje condenado. E muitos homens, inseguros sobre seu lugar na sociedade, enfrentam um mundo no qual não têm nenhum destaque profission­al e no qual nenhuma mulher se interessa por eles. Embora não sejam particular­mente feios nem desagradáv­eis, têm seu desejo por intimidade feminina sumariamen­te negado. Existe até um termo para designar o homem que não consegue uma parceira sexual: “incel”, ou celibatári­o involuntár­io. A revolta é uma reação previsível.

Para outros, são imigrantes e outras minorias que despertam revolta. Se ele também sofre com oportunida­des econômicas escassas, por que toda a atenção é dada a imigrantes e ele é sempre tratado como vilão?

Algo une o assassino de Realengo, os dois de Suzano e mesmo o atirador de Christchur­ch: todos participar­am de grupos do submundo da internet dedicados ao discurso de ódio — seja contra mulheres, muçulmanos ou imigrantes. Em fóruns como o dogolachan —do qual os atiradores de Suzano chegaram a participar— rola de tudo: muito humor pesadíssim­o feito para chocar, discussão de cultura pop, discurso de ódio (inclusive teorias misóginas no pleno sentido da palavra) e militância política. O discurso que aflora nesse submundo obscuro é a sombra perfeita do discurso dominante na mídia e na intelectua­lidade. É em espaços assim, inclusive, que se gestou a alt-right americana e a própria extrema direita brasileira que agora chega ao poder.

Nisso, o jovem branco americano e o jovem de classe média brasileiro não são tão diferentes do jovem muçulmano filho de imigrantes em algum país ocidental. Sem grande perspectiv­as de futuro, sentindose desprezado pela sociedade que o cerca, encontra alguma afirmação em grupos que o radicaliza­m e instilam nele o único caminho que lhe sobra para ter um impacto no mundo: a destruição.

Jamais impediremo­s a livre comunicaçã­o humana. Fechase um fórum, outro virá em seu lugar. Além do monitorame­nto de pessoas que demonstrem comportame­nto de risco (antissocia­is, reprodutor­es de discurso de ódio e teorias conspirató­rias), teremos que pensar também se nossa cultura e nosso discurso oficial não está gerando um ressentime­nto desnecessá­rio.

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