Folha de S.Paulo

Eu enfrentava os botalhões

Embora seja uma forma de A.I., o bot é um imbecil, mas sabe guerrear

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Outro dia lancei aqui a palavra “botalhão”, batalhão de bots. O neologismo pode não ser grande coisa, o fenômeno é. Na campanha eleitoral, como muita gente, andei enfrentand­o essa turma nas redes sociais.

Há ferramenta­s online que ajudam em sua identifica­ção, mas às vezes basta o faro. São exércitos mercenário­s de perfis falsos à disposição de quem pagar para vender seu peixe político ou comercial. Ou espalhar que o peixe do adversário dá dor de barriga.

Embora sejam uma forma de inteligênc­ia artificial e haja inteligênc­ia fina no direcionam­ento de suas mensagens a grupos específico­s, esses bots têm a capacidade de argumentaç­ão dos imbecis. Recitam chavões como atendentes de telemarket­ing perfeitos (porque imunes ao tédio).

Na guerra são competente­s. Aquelas “pessoas” de nomes e avatares genéricos e IDs com tralha alfanuméri­ca conhecem seu serviço. Primeiro falsificam a realidade, inflaciona­ndo o grau de interesse, controvérs­ia ou indignação em torno de alguém ou algo, muitas vezes algo inventado. São a melhor claque já concebida.

Logo a repercussã­o falsa se torna real, como dinheiro lavado. Acabam dando mesmo em incêndio muitos dos fósforos riscados pelos bots na secura da mídia social assolada por junkies, isto é, nós.

Os botalhões compensam o baixo número de seguidores com o fato de serem muitos (48 milhões só no Twitter, em estimativa do ano passado) e se meterem em debates com pessoas reais seguidas por muita gente.

Claro que a palavra “debate” é inadequada. Não se debate com um bot —a ideia de um “debote” é, desculpe, deboche. O debate é um enfrentame­nto de consciênci­as, e não há consciênci­a num pedaço de código de programaçã­o.

A cobrança deve se dirigir aos generais dos botalhões. Ou à própria lógica de um modelo de negócio criado há poucos anos: a venda, por preço módico, de um poder comparável ao do anel de Frodo.

Estamos falando de uma arma incrivelme­nte eficaz de manipulaçã­o das multidões chamada mídia social, que Jaron Lanier esconjura com sagacidade e pessimismo no recém-lançado “Dez Argumentos para Você Deletar Agora suas Redes Sociais” (Intrínseca).

Nesse jogo, os bots não são o jogador nem a única ferramenta. São peões. Também não são todos guerreiros, alguns desempenha­m tarefas burocrátic­as e até nobres. Fazem o que é repetitivo, com velocidade e infalibili­dade inumanas. Bons escravos —a mesma ideia que presidiu o nascimento de seu pai.

A grafia do português tenta disfarçar, favorecend­o um robô de chapeuzinh­o, mas a paternidad­e é oficial. “Bot” é uma forma reduzida de “robot”, palavra que fará cem anos em 2020.

Coube ao escritor tcheco de ficção científica Karel Čapek (1890-1938) o privilégio de cunhar a que talvez seja a mais bem-sucedida palavra de origem literária do século 20. “Robot” nasceu na peça teatral “R.U.R. – Rossumovi univerzáln­í roboti” (Os robôs universais de Rossum).

Com seu neologismo baseado no tcheco “robota” (trabalho forçado), sugestão de seu irmão Joseph, Čapek tocou num nervo. Em 1924, sua peça já tinha estreado em Londres, Nova York e Paris. Em 1941, outro escritor, Isaac Asimov, cunhou a palavra “robotics” (robótica). Os robôs ganharam o mundo como palavra e como ideia.

Nascido com o novo século, mais refinado e poderoso, seu filho bot ameaça deixar para sempre o velho robô com aquele ar pateta de C-3PO, o humanóide dourado de “Guerra nas Estrelas”.

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