Diretor volta à cultura sulista com trama entre a ficção e a realidade
“Soy gaucho, y entiendaló/Como mi lengua lo esplica:/Para mi la tierra es chica/Y pudiera ser mayor;/ Ni la víbora me pica/Ni quema mi frente el sol”.
Assim falou Martín Fierro, herói nacional argentino criado por José Hernández.
Em “A Cabeça de Gumercindo Saraiva”, os versos são lidos enquanto o capitão Francisco Saraiva (Leonardo Machado), filho de Gumercindo, descansa com seu bando. Em poucas palavras, entendemos a alma do “gaúcho”: ele que não é apenas brasileiro, mas dos pampas.
Tabajara Ruas dirige, corroteiriza e coproduz com Ligia Walper. Ele volta aos ancestrais da cultura sulista, como faz na literatura —seu livro “Gumercindo” foi base para o longa— e no cinema —“Netto Perde Sua Alma” (2001).
A trama se passa em 1895, durante a Revolução Federalista, entre a ficção e a realidade. Capitão Francisco, o bárbaro. Major Ramiro de Oliveira (Murilo Rosa), o homem da lei.
Mas é a lei à brasileira: exumaram o cadáver de Gumercindo, um líder rebelde. Cortaramlhe a cabeça e o major tem que levá-la à sede do governo, em Porto Alegre, como souvenir.
O grafismo de sangue e violência é leve. A brutalidade atormenta Ramiro, que carrega a narrativa com Francisco, seu duplo.
Se os Estados Unidos têm os caubóis, temos os gaúchos. Foras da lei curtidos no vento, com lenços no pescoço, botas, cavalos, revólveres. O opiáceo da liberdade, que Carlos Hugo Christensen levou ao cinema em “A Intrusa” (1979), adaptação do conto de Borges.
A loucura poética de “A Intrusa” aparece apenas de relance no longa. Um marechal desafia as leis de Deus. A narrativa passa então do naturalismo para o inesperado —o padre é tão louco quanto o marechal, que jura ter conversado com a alma de Gumercindo.
Mas o interlúdio é breve e logo Tabajara retoma as trocas de tiros que soam às vezes inverossímeis. Destaque para a bela atuação de Leonardo Machado, que tem a consciência do mito que traz para as telas.
Embora sem grandes saltos estéticos, “A Cabeça de Gumercindo Saraiva” é celebração de uma história que merece ser lembrada.