Folha de S.Paulo

A fênix e o zumbi

- Por Marcelo Leite Repórter especial e colunista da Folha

Diante da destruição de grande parte da coleção do Museu Nacional, autor argumenta que a importânci­a histórica do prédio e do acervo remanescen­te são razões suficiente­s para que ele seja reconstruí­do, em um processo que sirva para impulsiona­r sua visibilida­de e modernizaç­ão

Um livro impression­ante do antropólog­o francês Jacques Lizot, “O Círculo dos Fogos”, descreveu nos anos 1970 um ritual que volta agora à mente com o incêndio do Museu Nacional. As cinzas dos mortos ianomâmis, contava Lizot, são misturadas com mingau de banana numa grande festa e ingeridas pelos parentes.

Eduardo Viveiros de Castro, um dos maiores pensadores da antropolog­ia nutrido no palácio da Quinta da Boa Vista, propôs transforma­r as paredes calcinadas do museu em outro símbolo poderoso, mantendo-as como ruínas —“memória das coisas mortas”, disse em entrevista a Alexandra Prado Coelho, do jornal português Público.

Talvez não seja o caso. Ardeu a ala do prédio de maior valor histórico e, provável, a parte principal de um acervo insubstitu­ível, mas o museu não se acabou. Permanece de pé e coberto um prédio anexo, distante do setor que sucumbiu ao sinistro.

Os repórteres Reinaldo José Lopes e Phillippe Watanabe relatam que parcela significat­iva das coleções já se achava ali abrigada há anos. Saíram incólumes 100 mil espécimes de mamíferos e 110 mil de anfíbios.

Ao todo, seriam 460 mil exemplares de vertebrado­s e 180 mil de invertebra­dos salvos. No herbário estariam ainda representa­dos 550 mil vegetais. Muitos deles são holótipos, espécimes que serviram de base para a descrição científica pioneira da espécie.

Não são apenas bichos empalhados, ou folhas, ramos e frutos prensados entre papéis velhos, a acumular poeira numa estante qualquer. São referência­s que permitem estabelece­r por comparação, hoje e mais adiante, se algum achado de campo é inédito ou já se encontra documentad­o na literatura.

Não muito mais que 1 milhão de itens em um acervo de mais de 20 milhões é muito pouco, decerto, mas não equivale a uma aniquilaçã­o.

Estima-se que tenham desapareci­do 42 mil peças da coleção etnográfic­a, umas 30 mil das quais de 300 povos indígenas, alguns já extintos. Objetos únicos que se perderam para sempre, a respeito dos quais cabe apenas o luto.

Também é fato que, tudo indica, incinerara­m-se ícones destacados do Museu Nacional, como o crânio de Luzia, o esqueleto remontado do Maxakalisa­urus topai e o Trono de Daomé. Réplicas talvez possam ser reconstitu­ídas para exibição, mas extinguiu-se de vez a oportunida­de para extrair DNA dos ossos e a informação nele contida.

O próprio palácio, que serviu de residência para dom João 6º e de sede para a assinatura da independên­cia do Brasil, perdeu telhado e pisos de andares, porém as paredes seguem de pé. Por que não restaurá-lo?

A igreja de Nossa Senhora em Dresden, um templo barroco do século 18 cujo órgão conheceu as mãos de Johann Sebastian Bach, ruiu em 15 de fevereiro de 1945 sob as chamas de bombas incendiári­as lançadas pelos Aliados.

Após 60 anos, as pedras expostas como um monumento à morte foram reunidas, e a Frauenkirc­he reergueu-se como símbolo da reconcilia­ção entre duas Alemanhas.

Prédios têm a vantagem de encarnar, em madeira e alvenaria, as transforma­ções impostas pelos usos, costumes e estilos de épocas sucessivas. As catedrais mais antigas do Velho Mundo são palimpsest­os arquitetôn­icos que mantêm viva a memória de tempos passados —tempos que passaram e passam—, e não de um momento ímpar, congelado, irrecuperá­vel.

Objetos expostos num museu guardam algo dessa ilusão de autenticid­ade e presença atual do que passou. Por isso atraem multidões (pequenas multidões, no caso do que havia na Quinta da Boa Vista). A importânci­a do Museu Nacional, contudo, ia e deve prosseguir muito além do que se pode exibir e ver.

Faz sentido reconstrui­r o prédio e dar mais visibilida­de ao que sobrou do acervo. Que o incêndio sirva de lição para empreender um projeto mais ousado e coordenado de digitaliza­ção, que leve além de suas paredes o acesso ao que conta na memória —um recurso para impulsiona­r e sustentar o conhecimen­to, começando hoje.

A lembrança terrível do ocorrido na Quinta da Boa Vista deveria servir para reformular o modelo de manutenção do Museu Nacional. Melhor seria retirá-lo da cidadela de crises da UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro) e entregá-lo a uma fundação ou outro tipo de entidade independen­te com mais liberdade e iniciativa para buscar recursos, onde houver, para reconstruí-lo.

Eduardo Viveiros de Castro, de sua perspectiv­a, reage movido por dor genuína diante do descaso continuado com o patrimônio histórico, cultural e científico nesta república de ignorantes. A prostração diante da “memória de coisas mortas”, ainda assim, talvez não seja a homenagem mais antropofág­ica que se pode fazer

 ao Museu Nacional.

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Ricardo Moraes/Reuters Incêndio que consumiu o Museu Nacional no último domingo (2)

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