1973/74 A eleição de um voto só
A eleição presidencial de 1969 foi certamente a mais anárquica da história republicana. Houve dias em que o chefe da segurança do Palácio Laranjeiras distribuiu submetralhadoras aos oficiais. Quatro anos depois, o presidente Emílio Medici, que vivera aquela bagunça, conduziu a sua sucessão, a mais simples e silenciosa de todas. Quem escolheu o general Ernesto Geisel para a Presidência? Médici, e só Médici.
Em 1973, quando aquele general taciturno anunciou o nome de seu sucessor, dos 100 milhões de brasileiros, talvez não chegassem a 100 mil aqueles que sabiam dessa possibilidade, e talvez fossem 5.000 os capazes de encher uma página dizendo quem era aquele general Geisel. Seriam apenas 500 os cidadãos que acompanharam a escolha, de longe. Quantas pessoas mencionaram o assunto na presença do escolhido? Menos de 20.
De setembro de 1969 a março de 1974, Emílio Médici governou o país eliminando os vestígios da anarquia militar que começara em 1964.
Teve a ajuda decisiva do general Orlando Geisel, a quem entregou o Ministério do Exército e, de certa forma, a supervisão das demais Forças.
Orlando havia sido seu chefe, tratavam-se por você e tinham em comum uma confiança absoluta no uso da força.
Uma confissão de Médici explicaria sua noção de poder: “Eu tenho o AI-5 nas mãos e, com ele, posso tudo”.
De fato, podia manter a imprensa sob censura, fechar o Congresso, cassar mandatos, fazer o que bem entendesse. Esse general não haveria de deixar que sua própria sucessão escapasse ao seu controle.
Médici explicitou sua preferência pelo general Ernesto Geisel já em janeiro de 1971. Era o irmão mais moço do ministro do Exército, e o presidente colocara-o na presidência da Petrobras.
Mesmo tendo revelado a preferência numa conversa com colaboradores, nunca tratou do assunto com ele.
A escolha foi protegida pelas práticas do regime. Primeiro foi mandado para a reserva o general Albuquerque Lima, o azarão de 1969. Em seguida, entrou o ferrolho da censura.
A primeira ordem para não se falar no assunto veio em junho de 1972. Em agosto a proibição foi clara:
“De ordem do ministro da Justiça, está terminantemente proibida a publicação em qualquer jornal ou revista de comentários, críticas, sugestões ou análises a respeito da sucessão presidencial”.
Ela seria reiterada em pelo menos oito ocasiões.
O general Orlando Geisel tratou do assunto com o irmão.
“Por que não vai ser você?”, perguntou Ernesto.
“Porque minha saúde não permite”.
Um único movimento capaz de alterar a situação veio à tona em 1972, quando um deputado propôs a reeleição de Médici “para dar continuidade a esse extraordinário processo de desenvolvimento econômico e social que tem causado admiração ao mundo inteiro”.
O presidente poderia vir a ser candidato até mesmo numa eleição direta. A manobra prosperou por muitos meses e encantou os poderosos ministros da Fazenda, Antonio Delfim Netto, dos Transportes, Mário Andreazza, e do Gabinete Civil, João Leitão de Abreu.
Deu em nada, por dois motivos. O primeiro, essencial, foi a recusa de Médici. O mesmo general que chegou ao Planalto sem mover um só dedo recusou-se a continuar nele.
O segundo, que viria a blindar Geisel, foi o fato de que ele e seu entorno abraçaram a ideia: “Ninguém conte comigo contra o Médici”, dizia. Se o presidente quisesse continuar, ótimo. Contudo, se alguém quisesse se candidatar, não estaria se opondo a Geisel, mas ao presidente. Fecharamaporta.
O próprio Geisel era um crítico da posição em que estava: “Só num país como o Brasil na situação atual eu poderia chegar à Presidência da República. Como é que se chega ao meu nome? Ora, porque fulano é cretino, sicrano é burro, beltrano é safado. Isso é jeito?”.
Pelo voto de Médici, a ele chegou-se. Geisel deveria ir ao Palácio Laranjeiras na tarde de 13 de junho de 1973 para receber a notícia.
Surpreendentemente, foi avisado de que o presidente decidiu antecipar o encontro para o dia 12. Por quê? Porque não queria perder a transmissão do jogo Brasil x Austria. (Deu empate, 1 x 1.)
Dias depois o Brasil soube da novidade. Geisel foi eleito em janeiro de 1974 e tomou posse em março.
Médici nada recomendou, nada sugeriu e poucas vezes se reencontraram.
Para quem acredita na eficácia desse tipo de escolhas, Roberto Médici revelou que ouviu o seguinte do pai, quando já estava afastado da vida pública:
“Se arrependimento matasse, eu já estaria morto”.
Quem escolheu o general Ernesto Geisel para a Presidência? Emílio Médici, e só Médici