Folha de S.Paulo

Ricardo A. Pereira

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento

Neymar, pela reação à dor, parece ser feito do calcanhar de Aquiles

Concedo que tem graça o fato de Neymar ser um jogador que, tendo apenas duas pernas, por vezes grite como se lhe tivessem partido três.

Mas há uma certa nobreza naquela gritaria. Ele sabe que a Copa tem VAR. E que, nessas circunstân­cias, por mais espalhafat­o que ele faça, o árbitro tem sempre as imagens para confirmar se ele foi verdadeira­mente agredido ou não.

Noutros tempos, um bom fingimento poderia ser suficiente­mente persuasivo para obter um pênalti ou mesmo a expulsão de um adversário.

Alguns jogadores caprichava­m na atuação até para garantir que uma falta sofrida de fato era assinalada, jogando pelo seguro.

Todos nos lembramos do pênalti realmente cometido por Joël Bats sobre Branco, no Brasil x França da Copa de 1986, em que o jogador brasileiro fica a contorcer-se no gramado até o juiz apitar, momento em que magicament­e fica curado da maleita e se senta para receber o abraço de Alemão, que queria saudá-lo tanto por ter sofrido a falta como pelo excelente desempenho teatral.

E Rivaldo, em 2002, conseguiu expulsar um turco fazendo uma dor do joelho migrar para o rosto.

Mas, com o VAR, esse tipo de estratégia passou a ser inútil, e Neymar sabe disso. Ele faz aquilo mesmo por amor à arte.

Neymar é uma espécie de anti-Aquiles. A mãe de Aquiles mergulhou-o nas águas do rio Estige, dotando-o de invulnerab­ilidade.

Mas segurou-o pelo calcanhar, que ficou o seu ponto fraco. Neymar parece ser todo feito do calcanhar de Aquiles.

Ora, coragem não é ir à guerra sendo invulneráv­el; é enfrentar 11 adversário­s duros sendo uma delicada flor.

É importante sublinhar que, por exemplo, o mexicano Miguel Layún pisou mesmo o tornozelo de Neymar. E creio que concordamo­s todos que um pisão no tornozelo dói.

Mas a reação de Neymar não é a um pisão de tornozelo, é a uma amputação, com um machado, de um pé que foi previament­e mergulhado em lava.

É por isso que a atuação de Neymar me parece valiosa: aquilo é o que um multimilio­nário residente em Paris acha que a dor é.

Quando Anderson Silva quebrou a tíbia no joelho de Chris Weidman, no UFC, contorceu-se bastante menos.

E essa é uma evidência do poder da arte: a dor real machuca muito menos do que a dor imaginada.

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